segunda-feira, 4 de abril de 2011

Notas sobre “Danações” de Bruno Gaudêncio

Por Fábio Vieira

Danações (II)
A André Ricardo Aguiar

Hoje, não mais que hoje, sou disperso.
Pedaços de um mundo bem distante
Contemplo o que é surpresa, mas desprezo.
São dores que renascem neste instante.

Solidão inútil, constante “amiga”.
A flor que te inventou se recolheu.
És bela e pura, porém inimiga.
Hoje não mais sei o que sou eu.

Oh solidão que enche todo o quarto!
Delira no meu corpo incauto e gasto.
Deixa-me em paz um só minuto.

Não suporto este porto solitário
Estou morto, pois o mundo eu atrapalho.
E o que resta de saída é o absurdo.
(Bruno Gaudêncio, 2009)


Existem muitas danações no mundo da literatura, talvez a mais famosa seja a do Fausto I de Goethe, na qual Dr. Fausto pactua com Mefistófeles em troca do domínio do conhecimento e da posse de Margarida, personagem que depois de seduzida é arruinada. Há também outras danações em infernos criados por Dante (A Divina Comédia), Sousândrade (O Guesa) e Federico García Lorca (O Poeta em Nova Iorque).

Publicado no livro O Ofício de Engordar as Sombras (Sal da Terra, 2009), o poema de Bruno Gaudêncio é rico e produz sentidos em vários planos. O que me alegrou em ler o texto não foi o formato “soneto” nem os metros tradicionais utilizados. Antes, o jogo sonoro e imagético, que projeta a ideia do desvario e do estar fora de foco.

Na “danação” de Bruno há algo de Álvares de Azevedo (“O mundo é um lodaçal perdido”), porém não se trata de sentimentalismo exagerado nem de derramamentos emocionais típicos do romantismo, mas do jogo entre som e sentido impressos em poemas como “Meu sonho” (Lira dos vinte anos).

A imagem do poema é o da perdição de um “eu lírico”, já indicado no título “Danações”, composto por três partes. A referência à perdição está bem explícita nos termos: “disperso”, “pedaços de um mundo”, “porto solitário”, “absurdo”. O tempo verbal escolhido para dar vazão a esta perdição é o do “presente”: (“sou, contemplo, desprezo, renascem, sei, enche, delira, suporto, estou, atrapalho, resta”), além dos indicadores adverbiais: (“hoje, não mais que hoje, neste instante”). A escolha é apropriada, pois o “presente” condensa o que Anatol Rosenfeld (2008) chama de “momento eterno”, tempo mais que privilegiado para as plasmações dos estados de alma do gênero lírico, pois elimina a distância e sugere uma ação que se distende e se processa através do tempo.

Na segunda estrofe aparece o único verbo que se dirige ao passado (“inventou”), refere-se à “flor”, inacessível objeto que inventou a “solidão”, causadora de dor, sofrimento e angústia. Veja que o presente de turbação psicológica do “eu” foi provocado por um evento no passado (“recolheu”), porém o sentimento se perpetua no presente (“constante ‘amiga’”). Ainda nessa estrofe há a oposição entre os adjetivos “amiga/ inimiga”, que através da ação das rimas cruzadas aproxima os contrários e confunde ainda mais o “eu lírico”, num movimento de fusão entre o observador e a coisa observada: “Hoje não mais sei o que sou eu”.

Nos dois últimos tercetos, acontece a distensão da solidão do sujeito lírico. A interjeição “Oh” inicia a projeção dessa dor, que se estende até o final do texto. Há nessa área uma grande concentração de vogais fechadas e de tom mais escuro: /o/, /ô/, /u/. Sons isomórficos ao retesamento provocado pela dor. Há também as rimas internas da última estrofe “suporto, porto, morto” que reforçam o campo semântico soturno do isolamento. Para acentuar o drama, as súplicas de trégua não são atendidas, o sentimento se acentua, e só resta o “absurdo” como escapatória.

O espaço está limitado ao “quarto” físico, ainda que o drama se dê na psique ilimitada do sujeito. A inadequação do “eu lírico” reflete-se no trecho “o mundo eu atrapalho”, pois se trata de alguém que está espalhado sem ordem. Imagem de um “eu” que se refrata na dor do isolamento, atingido por mortal solitude, habitante de um mundo em pedaços.

Esses apontamentos indicam as proezas de um poeta que já de início mostra as ferramentas de sua oficina. Nessa danação viciante e insana de engordar sombras, Bruno não perde a aposta do poema e nos brinda com o seu belo ofício.

Referências
AZEVEDO, Álvares de. Os melhores poemas de Álvares de Azevedo. Seleção de Antonio Candido de Mello e Souza. 5. ed. São Paulo: Global, 2002.
GAUDÊNCIO, Bruno. O Ofício de Engordar as Sombras. João Pessoa, Sal da Terra Editora, 2009.
ROSENFELD, Anatol. “Teoria dos Gêneros”. In: ______. O teatro épico. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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Fábio Vieira é autor de Oriente ocidente através: a melofanologopaica poesia de Paulo Leminski (Ideia, 2010). Doutorando em Literatura e Cultura pela UFPB e membro do núcleo literário CAIXA BAIXA. email: fabiovieiramarcolino@gmail.com / twitter: @ffabiovieira

2 comentários:

  1. Ensaio lúcido e equilibrado. Os textos de Fábio Vieira são exatos e profundos.

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  2. Exato, Jairo. São análises com muitas informações, apresentadas de maneira simples, direta e eficiente.

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