terça-feira, 17 de julho de 2012

Algumas palavras sobre 'Terra em transe', de Glauber Rocha

Grifo nosso # 37

No primeiro semestre do ano de 1967, era lançado no Brasil, uma das grandes obras-primas da cinematografia nacional, o filme Terra em transe. Terceiro longa-metragem do cineasta baiano Glauber Rocha, realizador muito importante não só para o cinema novo, ainda em voga à época, como também um grande revolucionário da nossa arte cinematográfica. Depois de inúmeras controvérsias Glauber conseguiu exibir Terra em transe, em Cannes, no ano de 1967, conseguindo também, posteriormente, a liberação da exibição pública e integral de seu filme, que continha claras cenas que poderiam ser consideradas “subversivas”, pelo regime ditatorial vigente no período, nos cinemas do Brasil.

Mas Terra em transe não seria apenas isso, sendo considerado tanto na época de seu lançamento como durante esses 45 anos de sua História um grande marco do cinema político mundial. Um filme que através de elementos simbólicos, desvela-nos os segredos do artista como possível agente de mudanças políticas e sociais, no entanto nesse homem (Paulo Martins) reinam sentimentos paradoxais, sobre a vida, o amor, a poesia. Em determinado momento a personagem Sara nos braços de Paulo lhe diz, ao pé do ouvido, com uma ternura mórbida “Você não entende. Um homem não pode se dividir assim. A política e a poesia são demais pra um só homem...”

Aqui temos um trecho de um artigo escrito pelo professor e crítico de cinema José Carlos Avellar, com o título “Um filme ópera como um documentário em transe”, publicado na Revista de cine mais outras questões audiovisuais, pela Editora Aeroplano, em janeiro/março de 2005.

“(...) 2.
A ideia surgiu em janeiro de 1965, em Roma. Glauber acabara de debater sua Estética da fome no seminário Terzo Mondo e Comunità Mondiale na Rassegna del Cinema Latino Americano organizada pelo Columbianum, em Gênova.

Em nove páginas datilografadas, a ação dividida em seis tempos e 26 sequências, anotou pouco mais que uma sinopse de um projeto que se chamaria América nuestra, a terra em transe. Depois, em abril de 1966, no Rio de Janeiro, desenvolveu este esboço – na verdade, fez mais uma livre reinvenção do que propriamente um desenvolvimento da primeira anotação. Antes disso, no entanto, a primeiríssima sinopse gerou um outro projeto. Ainda em Roma, Glauber começou a escrever Terra em transe – para contar não exatamente a mesma história mas o mesmo conflito (a poesia como um gesto político, a política como uma ação poética) ambientado no Brasil, entre o mar do Rio de Janeiro e o sertão do Nordeste. Terra em transe, tal como surgiu na tela no começo de 1967, resulta a um só tempo do roteiro escrito em Roma, fevereiro/março de 1965, das várias versões feitas antes das filmagens e do jamais transformado em filme roteiro de América nuestra. São dois roteiros gêmeos: um personagem comum está no centro dos dois: um poeta dividido entre o jornalismo e a política, entre a poesia e a luta armada. Ele se chama Juan Morales em América nuestra, Paulo Martins em Terra em transe. É como se este novo personagem de duas cabeças (esta possível nova figuração de pelo menos um dos aspectos de Corisco, o cangaceiro de duas cabeças de Deus e o diabo na terra do sol) tivesse necessariamente gerado dois roteiros simultâneos. É como se Glauber estivesse procurando a história ideal para dizer que o cinema deveria ocupar um espaço entre a poesia e a política – nem num ponto nem noutro mas numa constante tensão, transe, movimento entre um e outro.

A ideia de um filme que se chamaria América nuestra, a terra em transe parece ter gerado um só roteiro de duas cabeças. Na primeira página da versão mais longa de América nuestra, (a segunda, a de abril de 1966, que ele escreveu no Rio de Janeiro) metade do título datilografado está rabiscado. Glauber escrevera: América nuestra (A terra em transe). Depois, entre correções e acréscimos feitos à mão, riscou o pedaço do título entre parênteses. Por longo tempo, mesmo depois de Terra em transe concluído, como é possível observar no texto que escreveu para a divulgação do filme, Glauber se referiu ao filme com o que anotou entre parênteses depois do título de América nuestra: A terra em transe. Deste modo talvez se possa dizer que Terra em transe surgiu como se Glauber tivesse riscado o pedaço do título antes dos parênteses: mais exatamente, um pedaço da história. Sonho duplo, fusão, um dentro do outro, poesia e política, América nuestra pode ter sido sonhado como se o movimento entre poesia e política partisse da política (agir urgentemente); Terra em transe, como se o movimento partisse da poesia (pensar a ação); os dois, o efetivamente realizado e o que existe só como anotação, podem ter sido sonhados como projeções do que Amor, no primeiro, diz para Juan e Sara, no segundo, diz para Paulo: a poesia e a política são demais para um homem só.

Um ponto de partida comum para este sonho duplo: Deus e o diabo na terra do sol:

“Senti a necessidade de prosseguir a estória de Manuel e Rosa correndo para um mar libertador. Esse mar banhava uma nova terra, esta terra estava em crise, dividida, estraçalhada – era uma terra possuída pelas paixões políticas e atormentada pelos problemas sociais”; uma terra de luz tropical e “mau gosto operístico nas mansões milionárias”; um “país ou ilha interior” onde os partidos “ofereciam ideologias fechadas, os capitalistas estavam às portas da falência, os escritores mudos, o povo esquecido de sua própria condição”.*

O sonho de um cinema entre a poesia e a política pode, na verdade ter começado com a experiência de Barravento: a consciência dos “problemas primários de fome e escravidão regionais” e de que o “cinema só será quando o cineasta se reduzir à condição de poeta e, purificado, exercer o seu ofício com seriedade e sacrifício”. E ter sido sonhado mais forte com a Estética da fome, a consciência de que o cineasta deve estar “pronto a por seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo.” (...)”
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* Glauber Rocha, Uma aventura perigosa, depoimento para a revista Fatos & Fotos, Rio de Janeiro, abril de 1967.

Mais sobre Terra em transe:
Aqui uma matéria de 1997, com o título “Glauber radical” , quando então se completava 30 anos do lançamento de Terra em transe, publicada no caderno Vida e arte, do jornal O POVO, e escrita pelo professor de cinema e cineasta Firmino Holanda. Segue o link para acessar à matéria na íntegra, resgatada e publicada em O POVO Você online, por Rebeca Sousa, em 2012.

Glauber radical - O POVO Você Online

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