sábado, 1 de fevereiro de 2014

'8½', de Federico Fellini, e 'A Noite Americana', de François Truffaut



por Luís André Bezerra

Como o cinema pode explicar o próprio cinema? Como os diretores podem produzir uma obra de ficção que, no seu enredo, comente o cinema ou indique alguma crítica cinematográfica? Obviamente que para tais questões não há respostas prontas, assim como não há uma fórmula para tal tipo de produção cinematográfica — se é que existe fórmula para algum tipo de produção respeitável.

Por ora nos interessa comentar dois filmes emblemáticos quando o assunto é metalinguagem. De maneira rápida e rasteira: a metalinguagem pode ser definida como a produção de texto de determinada linguagem que aborda, comenta, critica ou questiona essa própria linguagem — texto aqui sendo citado como qualquer tipo de mensagem portadora de sentido. Assim sendo, o metacinema é quando um filme trata da arte de fazer cinema, fala de um filme dentro do filme, e assim por diante.

Em 1963 (há exatos 50 anos, portanto), o diretor italiano Federico Fellini lançava , filme considerado como a tomada de uma nova direção na sua carreira. O enredo narra a crise criativa de Guido (Marcello Mastroianni), um cineasta desesperançoso que tentar encarar a vontade (ou necessidade?) de criar uma nova obra cinematográfica, mas que esbarra no vazio da sua própria existência. A falta de «sentido de direção» da vida de Guido acaba por anular sua criatividade artística (e vice-versa), desordenando não apenas os preparativos para a filmagem que estaria prestes a acontecer, mas mostrando serem igualmente caóticas as imbricações entre a vida do diretor (personagem) e seu filme e, consequentemente, a forma com que tudo isso é retratado em .

Os traumas de infância (com a repressora educação religiosa), a conturbada relação com as mulheres e o adiamento para assumir responsabilidades da vida adulta, estão imbricadas no pensamento e nas relações construídas por Guido. Em paralelo, pessoas que o cercam falam sobre política, religião, literatura, os caminhos e descaminhos da arte, enquanto o produtor tenta ser um braço pragmático do diretor para poder finalmente realizar as filmagens, etc. Tudo entrecortado por flashbacks, imagens oníricas e surreais, transformando o filme que vemos — o de Fellini, já que o filme de Guido é uma mera tentativa que esbarra num vazio criativo — numa grande proliferação de signos, ao estilo do neobarroco (na concepção teórica de Severo Sarduy).

Dez anos mais tarde, em 1973, foi a vez de François Truffaut homenagear o (fazer) cinema, com A noite americana (La nuit américaine). Mas ao contrário do filme de Fellini, que propunha uma visão mais «profunda» (conceitualmente) da concepção artística e da criação cinematográfica, Truffaut abordou o momento da filmagem em si, mostrando detalhes de como se faz um filme, desvendando certos artifícios utilizados no set para que o cinema construa e passe a sua «verdade» (através de «mentiras»). Um desses efeitos inclusive dá nome ao filme: «noite americana» (ou day for night, em língua inglesa) é o filtro utilizado na câmera que faz com que uma cena rodada de dia pareça noturna.

O «filme dentro do filme» (de enredo trivial, chamado A chegada de Pamela, que tem o próprio Truffaut no papel do diretor extremamente dedicado ao trabalho) é apenas um pretexto para homenagear «o cinema e suas mentiras». Essa arte é mostrada como «superior à vida», pela sua capacidade de resolver problemas que se mostram bem mais complicados (ou até mesmo incontornáveis) na vida real: um filme encontra uma solução para simular outra pessoa com a utilização de dublês; troca um «gato desobediente» por outro que ajude na captação de certa imagem; pode ser filmado sem a estagiária que estava na equipe apenas por ser namorada de um dos atores e que resolvera fugir com um amante; pode inclusive mudar a cena do assassinato de um personagem interpretado por um ator que morre no período das filmagens. Já a vida (real) muitas vezes não permite tais «trapaças», com os atores e demais integrantes da produção vivendo diversos conflitos nas relações interpessoais nos bastidores.

Assim, A noite americana acaba por celebrar esses encontros e desencontros entre a vida e o cinema, reconhecendo que homens e mulheres não podem ser mágicos, mas que o cinema pode (ou pelo menos tenta ser). No enredo de , a vida — criativa, que gera o cinema — em um momento de crise não aponta soluções para os conflitos (reais ou cinematográficos), como seria possível com trucagens no set de filmagem. Mas os dois filmes encerram «abrindo uma clareira» (em plano geral) para a paisagem com arte, dança, música e (obviamente!) cinema. O cinema que abre passagem para a vida (e vice-versa). É como o grito que ecoa de uma canção que diz: «the show must go on!». 
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Luís André Bezerra é doutor em Letras pela UFPB e integrante da equipe do blog O Berro.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 04, de 02 de outubro de 2013), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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