sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Fellini, o mito



por Francieudes Filho

«Acho que me tornei Fellini aos 22 anos; antes não era nada, apenas um longo período de incubação» disse, certa vez, o diretor, um dos mais importantes da história do cinema mundial. Influência para diretores como Stanley Kubrick, Martin Scorsese e David Lynch; Federico Fellini criou um mundo de fantasia bem peculiar. Sua infância, na Itália dominada por Mussolini e o Papa Pio XII, as mulheres que fizeram parte de sua vida e os sonhos que começou a registrar a partir da década de 60 inspiraram a maioria de seus filmes, em especial os realizados a partir de (1963).

No inicio da carreira, seus filmes seguiam as propostas da escola neorrealista. Ao contrário do cinema de ficção convencional, buscou caracterizar a realidade social, religiosa, política e econômica da época, aproximando o filme de um documentário. Em Os Boas-Vidas (1953), um de seus primeiros trabalhos, é nítido, também, o caráter autobiográfico – embora o diretor já tenha afirmado, em várias oportunidades, ter inventado quase tudo. Em uma pequena cidade no litoral da Itália no pós-guerra, um grupo de amigos de classe média leva uma vida de festas e bebedeiras, sem profissão e tampouco projetos para o futuro. Moraldo, um dos protagonistas, abandona a terra natal para tentar a sorte na cidade grande, deixando para trás o tédio e a futilidade. Por se recusar a continuar vivendo no vazio é o personagem em conflito do filme, e aquele que, com seu julgamento introspectivo e inicialmente bajulador sobre os amigos, e depois cada vez mais crítico, conduz o enredo do filme. Trata-se de uma sátira, em que o diretor faz um estudo do próprio meio social em que viveu. A arte imita a vida. Fellini deixou a terra natal, Rimini, pequena cidade litorânea da Itália, para tentar a sorte em Roma.

A Doce Vida (1960) é uma obra-prima. Um significativo relato cinematográfico da Itália do pós-guerra. A decadência é o tema central. O jornalista Rubini – Marcello Mastroianni – cobre notícias da alta sociedade romana, do leviano ao falso, tudo o que vende vira notícia. À medida que o humilde jornalista mergulha em um mundo de exuberância e prazeres efêmeros, povoado de personagens exóticos e mulheres deslumbrantes, seu sonho de se tornar um escritor sério vai ficando cada vez mais distante. E, ao contrário do que o título sugere, o filme caminha para um final amargo. O diretor retrata o tempo da velocidade e da vaidade exagerada, influências norte-americanas a sociedade italiana da época. A falta de comunicação da sociedade é evidente, e a burguesia, desprovida de sentido, é ironizada. O filme também eternizou o termo «paparazzi», um jornalista que perseguia e fotografava celebridades de nome Paparazzo, interpretado por Walter Santesso.

Com (1963), Fellini rompe definitivamente com o neorrealismo e cristaliza um estilo próprio. Trata-se de outro filme autobiográfico. O diretor conta a história de Guido, um cineasta em crise, com necessidade de se expressar. Tudo o que queria era fazer um filme honesto, sem meias verdades. Um filme em que pudesse fazer as pazes com um passado atormentado pelas lembranças da infância e sua relação com as mulheres. É atormentado por um produtor que quer lhe arrancar um filme qualquer para recuperar o investimento e um crítico que o humilha. Confuso e constantemente revisitando os erros do passado, passa a questionar os seus «demônios», que conversam com o cineasta e respondem seus questionamentos. O diretor, então, supera o passado e reconcilia-se consigo, assumindo não ter nada a dizer, não ter mensagem alguma para transmitir. O conflito com a religião católica também é um ponto central da obra.

A ideia para o filme surgiu da própria crise criativa do diretor. Fellini era conhecido por não trabalhar com roteiros acabados. Dizia que transformar em palavras ideias que deveriam ser transportadas diretamente da sua imaginação poderia corromper o filme. Durante a pré-produção do filme, havia esquecido completamente sobre o que seria o trabalho. E pretendia abandonar o projeto. Mas, durante a festa de aniversário de um operador de câmera da Cinecittà (estúdio de cinema italiano, localizado na periferia de Roma), ele teve uma ideia, o filme contaria a historia de um diretor de cinema que iria dirigir um filme, mas esqueceu-se do que se tratava. Espelhar a realidade do seu criador era novidade no cinema, algo que desconcertou a todos e fez do filme um marco do cinema do século XX.

Em filmes como Julieta dos Espíritos (1965) e Satyricon (1969), o diretor constrói a narrativa apoiado em símbolos psicanalíticos, sob forte influência do trabalho do psiquiatra suíço Carl Jung. Em Julieta dos Espíritos, Fellini analisa um temperamento feminino em um momento de crise afetiva. Uma mulher, Julieta, na faixa dos quarenta anos leva uma vida tipicamente burguesa e cercada de luxos. Um dia Julieta passa a desconfiar que seu marido tem um relacionamento extraconjugal. A investigação acerca da veracidade ou não desse caso leva Julieta a enfrentar seus demônios. Sua infância, seus traumas e sua sexualidade reprimida vêm à tona. Julieta precisa se libertar de seus medos e afirmar-se como mulher. No decorrer da jornada, depara-se com personagens bizarros, como um médium que lhe faz previsões e os detetives particulares, responsáveis pela investigação do caso amoroso do marido.

No filme Satyricon, que tem um aspecto fragmentado, Fellini demonstra a decadência romana da época de Nero. A cor é violentamente emocional, o vermelho exagerado dos afrescos e o azul intenso do céu e do mar são perturbadores. A paisagem seca das rochas dá um clima de aflição enquanto a névoa e o vento dão um caráter de suspense.

Ginger e Fred (1986), um de seus últimos trabalhos, é uma sátira à televisão e uma homenagem aos musicais. Conta a história do reencontro, para uma exibição na televisão, de dois bailarinos veteranos, Pippo Botticella (Marcello Mastroianni) e Amelia Bonetti (Giulietta Masina), que na juventude imitavam Ginger Rogers e Fred Astaire, dois ícones dos musicais de Hollywood. Há trinta anos sem se verem, o reencontro mexe com ambos. O cansaço e a idade fazem da aparente singela tarefa, uma missão árdua, e por vezes ingrata. Artistas oriundos do teatro, afeitos a improvisação e atuação sincera, não estão acostumados com a velocidade da televisão, seus corte e edições, que acabam por descaracterizar sua arte. E os bastidores de um estúdio de tevê se apresentam como um verdadeiro circo de horrores de absurdos inquietantes. Com o desenrolar dos acontecimentos, os protagonistas passam a se perguntar por que se meteram naquela enrascada. Fellini apresenta a televisão como uma maquina sensacionalista que vende absurdos, algo sem sentido, com propagandas grotescas e exageradas, resultado de um capitalismo massacrante que escraviza o espectador em uma sociedade de consumo desenfreado.

Fellini dizia que fazer cinema era pura diversão, que era um brinquedo, um passatempo, e que nunca quis demonstrar nada ou deixar mensagem alguma. A verdade é que o mito criou um cinema totalmente autoral com um conjunto de obras-primas provocantes. A fantasia e não apenas na realidade, presente em suas obras, rompe com as formas tradicionais de se produzir cinema. Assistir a seus filmes é uma viagem narrativa única, uma experiência de reflexão séria, mas também de muita sensibilidade. 
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Francieudes Filho é estudante de Teatro na Universidade Regional do Cariri (URCA).

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 06, de 16 de outubro de 2013), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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