quinta-feira, 10 de julho de 2014

Poesia de fé e facas



por Amador Ribeiro Neto

Adélia Prado completa 80 anos no próximo ano. Sua poesia mantém a mesma inquietação existencial de quando ela publicou seu primeiro livro, Bagagem, aos 41 anos de idade. Agora, com Miserere (Rio de Janeiro: Editora Record), considera-se mais polida pelo tempo vivido. Na verdade sua poesia recupera, isto sim, o vigor do livro de estreia e do belo Pelicano, publicado 11 anos depois. Uma grata surpresa.

Integrar a lista de poetas finalistas do Prêmio Portugal Telecom é mais do que justo. Embora em companhias lamentáveis, como temos apontado nesta coluna.

Miserere é um título derivado da expressão latina “miserere nobis” (“tende piedade de nós”), bastante utilizada na liturgia da religião católica. Mas se os tropicalistas ao fazerem uso da expressão ironizaram-na pelo viés político, no final da década de 60, Adélia a toma como signo de compaixão e danação do homem no mundo.

Nas quatro partes em que o livro se divide (“Sarau”, “Miserere”, “Pomar”, “Aluvião”), a poeta mais pergunta que afirma. Mais inquieta que sossega o leitor. Fala mais de “contramor” que de amor-feliz-para-sempre. A angústia do homem é apanhada numa linguagem essencialmente melódica. Os poemas são, antes de mais nada, música.

E se a poesia tende para a música, como afirma Ezra Pound, neste livro Adélia merece ser festejada, bem festejada.

Em “Pingentes de citrino” o eu-lírico depois de furar as orelhas conclui: “Fiquei mais corajosa, / igual a mulheres que julgava levianas / e eram só mais humildes”. A imagem antitética furando os versos é a materialização dos brinquinhos “miúdos como grão de arroz”. O cuidado na construção imagética é um zelo pela filigrana, pelo pormenor, realçando a grandeza do poema.

Em “Pentecostes” o eu-lírico está só, doente e reza “como quem vai morrer”. Pontua:  “O zelo de um espírito / até então duro e sem meiguice / vem em meu socorro e vem amoroso. / Convalescente de mim, / faço um carinho no meu próprio sexo / e o nome desse espírito é coragem”. O espírito, que é o Espírito Santo do título do poema, é também o espírito do eu-lírico que reza. E que se automassageia sexualmente.

Carne e desejo: pecado. Corpo e alma: opostos. Eis a lei da religiosidade judaico-cristã. No entanto, no poema tudo é absolvido pelo milagre da linguagem poética. Que instaura uma nova realidade reinventando o EU: “meu socorro”, “de mim”, “faço”, “no meu próprio”. O outro, o divino, é uma parte palpável do eu suplicante. Criador e criatura unem-se num neobarroquismo que recicla o homem dilacerado de todos os tempos.

Em Miserere, Adélia Prado não faz concessão à poesia fácil. Em entrevista ao jornalista Luciano Trigo declarou que tornar o poema palatável “é crime”. Esta sabedoria poética está muito bem expressa nesta obra. Não é a religiosidade, ou a velada crítica a ela, que tornam ele um livro belo. É o uso que Adélia voltou a fazer da linguagem poética. Não é um livro para religiosos ou ateus. É um livro para amantes da poesia. Um livro de fé e facas. Crença e cortes. Doa a quem doer. 
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 04 de julho de 2014, p. 7.

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