quinta-feira, 17 de julho de 2014

Poesia sem cabo nem rabo



por Amador Ribeiro Neto

Alice Sant’Anna (Rio de Janeiro, 1988) é autora de Rabo de baleia, um dos finalistas do Telecom de poesia deste ano. Nas orelhas do volume Heloisa Buarque de Hollanda afirma enfaticamente que estamos diante de um “livro definitivo que exibe com maturidade o enorme talento e mestria poética” da poetisa. Heloisa Buarque de Hollanda é uma das maiores referências quando se fala em crítica de poesia contemporânea no Brasil. A Cosac Naify, que publicou Rabo de baleia, uma das mais relevantes editoras do país.

O livro de Alice Sant’Anna é um mergulho raso nas águas do surrealismo. A imagem, sem pé nem cabeça, do rabo da baleia que cruza e se afunda nas tábuas corridas da sala de estar, dá o tom do desastre que o leitor encontrará daqui até o final do volume. Nada de novo acontecerá. Parcos versos chegam a ser poéticos. Mesmo assim, isoladamente.

Não há um único poema bem realizado em todo o livro. A poetisa até se esforça para atingir a meta. Mexe na virgulação dos versos de modo a criar um modo de expressão diferente do habitual. Mas não consegue fugir do corriqueiro. Logo na leitura do terceiro poema o leitor já conhece seus artificialismos.

A tentativa de surpreender com o surrealismo é igualmente infeliz. O desvio das imagens e significados não tem um referencial como apoio. Resultado: há saturação do surreal pelo surreal.

Sem ao menos um campo de relações para o leitor estabelecer referências, e situar poeticamente o desvio, os “poemas” desmancham-se nas tristes páginas deste livro.

Vejamos: “a enorme bola branca / entrou manchando toda / a sala de branco / de luz do inverno / que não esquenta, mas se não / sentíssemos nada não usaríamos casacos / pois a luz já convenceria do calor”. E prossegue: “tem dias que a arrumadeira / por descuido deixa a porta do banheiro aberta / quando vai tratar de outra coisa / em outro canto, a porta aberta / permite que eu entre no banheiro antigo / a que os visitantes não têm acesso / pois a porta fica sempre fechada”.

O prosaísmo de Alice Sant’Anna é de tal forma rasteiro que se seus textos não fossem grafados em forma de versos poderiam ser tomados como minicontos. Igualmente lamentáveis. Mas minicontos. Como em “veio, mas esqueceu as calças / o micro-vestido que deixa / as coxas quase inteiras nuas, a sueca / entrou na sala / mal o professor abre a pasta, / tira os óculos escuros e o ipod / bonjour, ela diz / aquele sorriso às nove e três / por pouco não perde a chamada / senta ao lado do americano / que afasta a cadeira atento às pernas / o professor retribui o sorriso / e começa mais um dia: a chamada / em ordem alfabética / pelo sobrenome / não acerta nunca o nome da chinesa / que virou clara para simplificar / ele diz algo incompreensível / e levanta a cabeça esperando aprovação / no que a chinesa corrige: / pode me chamar de clara”.

A prosa pode ser poética: Guimarães Rosa, Clarice Lispector, etc. Há poemas em prosa: Baudelaire, Fernando Pessoa (Bernardo Soares), etc. E há a prosa propriamente dita. O que Alice Sant’Anna faz é um prosaísmo destituído de qualquer tom poético. Não há maturidade, talento, nem mestria poética em seu livro.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 11 de julho de 2014, p. 7.

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