quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Poesia do desgaste



por Amador Ribeiro Neto

Samarone Lima nasceu no Crato, Ceará, em 1972. Em 2010 foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria reportagem. No ano passado foi novamente, mas desta feita na categoria poesia. Este ano é finalista do Prêmio Portugal Telecom com O aquário desenterrado (Rio de Janeiro: Editora Confraria do Vento).

A poesia de Samarone Lima é um resgate da memória familiar, com incursões pela metalinguagem e algumas observações centradas num eu que não se encabula de ser nomeado com o homônimo do poeta. Como se o alter ego se impusesse em terceira pessoa visando criar novo personagem e novo foco de observação.

O recurso falha. O que fica é um espelhamento egoico do poeta diante de sua vida e de sua poesia. Isto soa constrangedor. Poderia haver uma pitada de humor ácido, como fez Drummond quando se referia a si mesmo pelo primeiro nome, Carlos. Poderia haver uma desconstrução do eu no desvelamento de sua alteridade. Não há. O que fica é uma autoadulação. Ou ingênua autopiedade. Ambas incomodam o leitor.

Sua poesia, feita com imagens do cotidiano, não se desprende de observações banais e de uma linguagem vazada por clichês. Sim: há um bom poema em todo o livro. É narrativo e tira proveito poético do coloquial. Falo de “O elefante azul”. O poema reconta um episódio da infância, levemente marcado por um nonsense. E arremata com a metáfora do fazer poesia. Fora ele, o leitor busca e só se embaralha no cipoal da mesmice enfadonha das sonoridades, das imagens, das ideias nucleares.

“Seu irmão tirou ontem / os últimos quatro dentes / disse minha mãe. / Com a chapa, ficara melhor / para mastigar / acredita ele”. Isto é poesia ou publicidade odontológica? Consideremos um poema em que o eu lírico, após relatar a morte do avô conclui: “Não deixou bens. Deixou quatro filhas”.

Outro: “Agora o rosto do pai / está dentro do filho”. E mais este: “O cimento fresco, liso / anuncia o fim / da nova construção”. Onde o poeta vai buscar imagens tão singulares, tão desestabilizadoras da percepção automatizada? Mas tem mais.

A originalidade grassa fartamente em “À mesa, a mãe, agora avó / deita uma lágrima / ao lembrar que todos / um dia foram crianças”. Estes versos remetem-nos à tautologia de “ah esse coqueiro que dá coco”, de Ary Barroso.

Em dois momentos de lucidez o poeta anota: “Melhor não buscar, Samarone. / Aquieta-te” e “Anoto a vida. / Não sei se é poesia o que faço”. Já que ele pergunta, respondo: Aquieta-te, Samarone. O que você faz não é poesia.

O poema que dá título ao volume é uma diluição de imagens e ritmos drummondianos. Não há efeito poético algum. Samarone usa e degrada o grande poeta mineiro. Coisa de aprendiz mal intencionado. Ou, quem sabe, coisa de poeta inconsequente. Adepto da inércia, da negligência, do desleixo.

Num dos últimos poemas do livro deparamos com este trocadilho: “Meu labirinto / não veio de Creta / veio do Crato”. Trocadilho infeliz. Desastroso. Torpe.

Em tempo: Samarone Lima acaba de ganhar o Prêmio Biblioteca Nacional na categoria poesia com o presente O aquário desenterrado. 
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 12 de setembro de 2014, p. B-7.

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