quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Barba, cabelo e bigode no primeiro turno

por Hudson Jorge

Já eram nove horas da noite, em fins de apuração dos votos para o primeiro turno para as eleições estaduais. O celular descansava em cima da mesa. Olhos tensos ao seu redor. De repente, o bicho vibra. Todos se agitam. No entanto, após um gesto rápido com a mão e um “Eu atendo!” com uma voz meio confusa, todos se calam. Romualdo olha para o visor e lê: “Nissim – Linha segura”. Atende.

- Nissim?

- Não. Aqui é o Zeca de Maria da Penha, auxiliar do assistente do assessor de Nissim.
Confuso, Romualdo fingiu se lembrar da pessoa.

- O chefe ta querendo falar contigo. Amanhã, às 7h da manhã, no seu gabinete em Palmas. Pede que não se atrase. Até logo!

Com o olhar perdido numa parede esverdeada do comitê, Romualdo vai retirando, vagarosamente o celular da orelha e o coloca em cima da mesa. Olhou para todos e disse baixinho com a pálpebra trimilicando: “Ele deve ta puto da silva!” Um de seus assessores comenta mais baixinho ainda: “Da silva é binga, Tá puto é de Oliveira, mermo”.

Há doze quilômetros dali, Muncedão já estava bem relaxado na poltrona do papai, vestido no seu tradicional samba canção de bolinhas azuis, gravata ainda no pescoço e uma bacia de pipocas no colo, assistindo às apurações pela rede globo. O telefone para linhas seguras dispara em cima do criado mudo, assustando o velhinho bonachão que espalha as pipocas pelo carpete do seu quarto climatizado e livre de muriçocas. De uma forma inocente, Muncedão atende em tom de brincadeira.

“Nissim meu filho! Segundo turno na veia, hein!”
- Muncedo, aqui é o Zeca de Maria de Penha.

- Zeca meu fí, como vai sua mãe! Tô com saudade daquele pirão de peixe! Manda um abraço pra ela e...

- Muncedo, o chefe quer falar com você e o assunto é sério. Sem falta amanhã no seu gabinete, às 7h.
- Mas, é que...

Antes mesmo de terminar de falar, o telefone sonoriza o clássico “tu tu tu tu”. Muncedão não quis mais comer pipocas naquela noite.

Dia seguinte em Palmas da Cajueira. Pela cidade, os moradores esgueiram-se pelas fachadas e mal falam bom dia! Um clima de velório foi instaurado na cidade. Ninguém quer comentar o assunto.

Na sala de espera de um escritório localizado há cinco quilômetros da sede do município, numa fazenda servida de farto rebanho e “pesque e pague”, Muncedão e Romualdo aguardam ansiosos.
Aos seus pés, um mói de filepas de unhas dão um contraste ao piso da cor grafite. Enquanto Muncedão torcia seus bigodes, Romualdo fazia redimuinhos em sua barba espessa.

- E aí, Fenômeno? O que você acha que vai rolar aí dentro dessa sala?

- Mistério Muncedão, mistério! Falou com os olhos perdidos mais uma vez numa parede verde musgo que separa a sala de espera do escritório do grande líder.

De repente, ouvem lá de dentro estrondosos barulhos de vidros sendo quebrados, móveis arrastados e objetos sendo atirados nas paredes.

Minutos depois, a porta se abre sobre os olhares atônitos dos dois. Era o prefeito José Paulo, correligionário de Romualdo e Muncedão, disfarçando os olhos marejados e acenando um cumprimento com as mãos. Escapole pelo corredor sem dizer uma palavra.

Um assessor assustado se apresenta e autoriza a entrada dos dois.
Hesitavam na tentativa de fazer com o outro entrasse na frente, mas acabaram entrando juntos.

Em cima de um birô gigantesco de vidro, os charutos cubanos, presente do ex-presidente Lula, tinham dado lugar a alguns maços de Hollywood. Em uma enorme cadeira executiva que estava de costas para entrada, via-se apenas a fumaça que escapava freneticamente da boca de seu usuário. Muncedão e Romualdo entraram em silêncio e com cuidado para não pisarem nos objetos espalhados pelo chão. Ao canto da parede, três assessores com pranchetas, tablets e celulares procuravam concluir alguma tarefa.

A cadeira se vira e junto com ela um Nissim completamente desfigurado, cujos cabelos já não lembravam os fios lisos e sedosos que costumam refletir uma certa vaidade capilar,  olheiras e certo ar furioso davam um toque assustador à sua fisionomia, denunciando que as coisas não estavam nada bem. Com a voz mais rouca do que de costume pergunta asperamente: “E vocês! Como explicam isso?”

Muncedão e Romualdo abaixam a cabeça automaticamente. “Vamos, respondam!” Fala firme e calmamente apertando a bituca de cigarro contra o cinzeiro e em seguido acendendo mais um.
“Sabe como é o Kid, né Nissim?”, começou Muncedão tão vermelho de pavor que destacava seus bigodes prateados como a lamina de um peixeira sob o sol do meio dia. “O Kid minou a minha gestão”, disse tentando fugir pela tangente.

Romualdo tentou argumentar que lá em Mirandopólis a estrada para Santa Fé virou piada de campanha, que os munícipes andam dizendo que vão mudar o nome do distrito para “Só Com Muita Fé a Estrada Vai Sair”; que o canal foi consertado pela metade, o SAMU demorou à chegar e o “Minha Casa Minha Vida” anda a passos lentos por causa da demora da obra e do cadastro.

Nissim que ouvira com aparente calma, bradou: “Incompetentes! Isso sim! Incompetentes vocês são! Sabem por quantos anos da minha vida venho me preparando para ser governador? Sabem?!?I?I?
Nisso deu um soco tão grande na mesa que fez tombar uma garrafa de uísque 21 anos que já estava pela metade.

E continuou fungando: “desde que eu era menino novo aqui em Palmas eu sonho com isso. Tenho investido minha vida toda nesse projeto. Minha campanha investiu milhões e milhões de reais!”.

E continuou...

“Na época das campanhas de vocês eu dei suporte, fiz palanque. Se lembra Romualdo, das horas e horas de conversas lhe ensinando como deveria proceder como candidato e, depois, como prefeito?”
Os olhos de Nissim começaram a esbugalhar. A jugular pulsa freneticamente. A testa sua em bicas.

Do outro lado do luxuoso birô, Muncedão e Romualdo ouvem tudo congelados em suas cadeiras, olhos fixos no centro da mesa.

Nissim continua... “E vocês me retribuem com uma pêia nas eleições? Que tipo de cabos eleitorais são vocês???

Muncedão, sem muita convicção, tenta justificar as dificuldades financeiras provocadas pela crise...

“O que Muncedo? E que diabos você fez com as verbas parlamentares? Ao invés de investir, saiu fechando unidade de saúde, sucateando hospital... E os recursos do IPVA, o que fez com eles? As ruas de Juapólis parecem queijos suíços com tantos buracos. Quando cheguei ao final da carreata parecia ter levado uma surra!”

Nisso, Romualdo ameaça rir com o canto dos lábios e é interrompido com outro soco na mesa! Nissim dava sinais que iria perder o controle totalmente. “E em Mirandopólis?!?! Como se explica inexpressiva votação? Como?”

Romualdo embarga a voz: “A culpa é da santa...”

“Santa? Santa inércia, isso sim! Comemorações dos 250 anos do Mirandopólis um fiasco! Pessoas reclamando da saúde, do DEMUTRAN... Greve de professores às vésperas da eleição! E pra acabar você e o presidente da câmara se metendo em briguinhas pra ver quem me apoiaria melhor...”

Nissim fungava e espumava pela boca enquanto jogava na mesa dezenas de páginas impressas de blogs e sites de notícias da Região para endossar o que acabara de falar. “Bem como se diz por aí: quem tem dois, tem nenhum. Paciência! Paciência!”

“Mas, é que...” Romualdo tenta se defender novamente, mas é interrompido por um Nissim cada vez mais descontrolado que joga contra parede a garrafa de uísque.

“Vocês me decepcionaram! Até aqui maus gestores e péssimos palanques eleitorais. Vão! Partam e melhorem suas estratégias. Zeca de Maria da Penha já tem as novas coordenadas. E que fique claro uma coisa: se quiserem verbas parlamentares até o fim de seus mandatos e apoio para as eleições em 2016 é bom virarem esse jogo!” Nissim acenou friamente para que deixassem a sala enquanto pedia outra garrafa de uísque.

Saíram calados do escritório, não houve brecha para um adeus. O corredor que dava acesso à saída parecia interminável e, pelo caminho, assessores do senador os olhavam com desdém.

Já do lado de fora, Muncedão chutava pedrinhas no calçamento, sujando de poeira as pontas dos sapatos. Pensou que talvez fosse a hora certa para se aposentar, aproveitando sua impopularidade e o patrimônio construído e viver por uns tempos no Chile com a esposa.

Romualdo por sua vez, com seu clássico dedo indicador na queixada também pensava calado.
Lembrou-se da campanha meteórica, dos abraços e beijos distribuídos, dos falsos elogios da high society mirandopolisiense agora cada vez mais distante. Lembrou-se também das promessas não cumpridas de uma Mirandopólis diferente. No entanto, as urnas denunciavam que tudo estava por virar cinzas. Pensou que seu sorriso talvez não brilhasse tanto como antes.

Ambos voltaram para suas cidades pensando numa forma de não decepcionar mais uma vez o grande chefe.

Essa é uma obra de ficção. 

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