terça-feira, 28 de outubro de 2014

'Vidas Secas', o filme



por Luís André Bezerra

No último mês de julho (de 2013), a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) prestou uma homenagem especial ao escritor alagoano Graciliano Ramos. Dentre as possíveis motivações (além do óbvio reconhecimento à importância e qualidade de sua obra): em dezembro deste ano faz 80 anos do lançamento de sua estreia em livro, com Caetés (1933), e no último mês de março (de 2013) tivemos o 60º aniversário da morte do romancista.

Para a nossa Revista Sétima, naturalmente uma efeméride a ser destacada teria a ver com o cinema. Portanto, enfatizamos o lançamento do filme Vidas Secas, com roteiro adaptado do romance homônimo de Graciliano Ramos (de 1938), filmado por Nelson Pereira dos Santos há 50 anos, em 1963, no interior do estado do escritor: Alagoas.

Embora nosso assunto aqui seja o cinema, mais especificamente o longa do diretor paulistano, a menção a Graciliano Ramos parece inevitável. A adaptação de Vidas Secas é um caso especial de grande aceitação (e de inúmeras menções elogiosas e prêmios) da crítica quando o assunto é adaptação de obra literária para a telona — ainda mais com o desafio de levar para o cinema uma obra tão conhecida e relevante para a literatura nacional.

Quando se fala de "adaptação", comumente temos a história (o enredo) de alguma narrativa literária "adaptada" para muitas das características inerentes à linguagem cinematográfica. Entretanto, muitos dos elogios ao trabalho de Pereira dos Santos em Vidas Secas dizem respeito à capacidade que o diretor apresentou em transpor para a tela muito da estilística literária de Graciliano. No filme, mais do que a história de Fabiano, sinha Vitória, seus dois filhos e da cachorra Baleia (o papagaio vira refeição logo no início do filme, pois "também não servia pra nada, nem sabia falar"), temos uma obra "silenciosa", que se vale da concisão para retratar a sequidão e rudeza de personagens submersos na aridez do sertão.

O silêncio é o verdadeiro condutor da "trilha sonora" do filme. Nada de música de fundo. A música existente é diegética: faz parte da cena, é executada e/ou ouvida por personagens — como nas passagens com a banda cabaçal, o reisado e os cânticos religiosos na hora da missa. Esse é um dado que revela o compromisso da linguagem do filme com a supracitada sequidão, com os personagens igualados a bichos na incapacidade de se manifestar através da linguagem verbal — mais um dado que reforça o silêncio, com poucas falas dos personagens, entrecortadas pelos latidos de Baleia, grunhidos de alguns bichos, rangidos de carros-de-boi, etc.

O Cinema Novo começava a mostrar "sua(s) cara(s)", além de o filme apresentar um forte diálogo com o neorrealismo italiano — na retratação de pessoas simples sem alguma trama "mirabolante", apresentando basicamente fatos "banais" ou acontecimentos isolados, que na junção e na repetição dos infortúnios dos personagens (impossibilitados de melhorarem suas condições de vida) apresentam um panorama aparentemente trivial, mas que muito nos fala sobre a condição humana, sobre a disputa pelo poder (econômico) e a dominação de umas classes sobre outras através da linguagem.

Mas, além disso (ou acima de tudo), os indivíduos (do povo) seguem com a capacidade de insistir, tentando buscar algo melhor, almejando uma vida mais digna. Daí talvez emane a força de Fabiano e sinha Vitória quando recomeçam um nova caminhada (que promete ser longa) no final do filme.

Finalmente têm um momento de conversa, articulam um diálogo efetivo, parecendo encontrar forças e palavras, traçando planos que podem apontar para alguma esperança no futuro. Ele, pragmático e mais realista, deseja que os filhos cresçam e possam seguir sua profissão de vaqueiro; enquanto sinha Vitória, quiçá ancorada pela força (utópica) do seu nome, deseja que os filhos mudem essa história através dos estudos, das leituras, tendo acesso a coisas que eles nunca puderam encontrar nas longas jornadas (sem lar, sem roçado, sem a cama de couro tão sonhada). Não podem parar de andar, até toparem com novos episódios, que nem sempre serão a certeza de um novo (e melhor) destino. 
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Luís André Bezerra é doutor em Letras pela UFPB, professor substituto do Curso de Letras da URCA e integrante da equipe do blog O Berro.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 14, de 11 de dezembro de 2013), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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