quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Poesia de mil asas



por Amador Ribeiro Neto

A poeta Líria Porto (Araguari-MG, 1945) publicou Borboleta desfolhada (2009), De lua (2009), ambos em Portugal, Garimpo (2012) e Asa de passarinho (2014) pela Editora Lê, de Belo Horizonte. Os dois últimos, dedicados ao público infantil. Asa de passarinho é um livro que fala de bichos, águas, homem, liberdade e tempo. Tudo numa linguagem suave e sublime. Como só o lirismo delicado e penetrante de Líria Porto sabe ser e fazer. Pra combinar, traz ilustrações de grande beleza assinadas por Silvana de Menezes.

Lendo Asas de passarinho veio-me o poeta e romancista espanhol Ramón Gomez de la Serna (1888-1963), criador das “greguerías”, textos curtos com toque reflexivo bem humorado. Ou, como ele mesmo diz, “o atrevimento de tentar definir o que não pode ser definido”. É dele a frase: “O livro é um pássaro com mais de cem asas para voar”. “Asas para voar”: a redundância, tomada como nova informação, torna-se chistosa.

Líria Porto parece ter algo em comum  com Gomes de la Serna. Sabe recortar o novo do senso comum. Sabe desentranhar o poético do usual. Sabe inserir a crítica no cerne da criação. Tudo com admirável condensação de ideias, imagens e sons.

Ler sua poesia é voar e levar consigo o peso do corpo. Não é viagem dentro do nada. É viagem no espaço sideral. Por entre astros, estrelas e imaginário provocados. “Sei voar e tenho as fibras tensas” canta Caetano, como se estivesse resenhando a poesia de Asa de passarinho.

Líria Porto tem o dom de cutucar o leitor, mirim e adulto, com fagulhas de palavras incendiadas pela alegria de viver. E pelas brasas de versos que ateiam ações e despertam a vontade de viver.

É que há uma militância em sua poesia. Mas não é aquela esvaziada pelo didatismo. Nem pela arrogância das persuasões. Ela sabe que o que vale para o poeta é a linguagem. De nada adianta o inflamado discurso engagée se algum tempo depois ele próprio dana-se, morro abaixo, nas forças do Tempo e da História. Datado. Vencido.

Assim, um poema como “Liberdade” abraça ternura e provocação infinitas, trans-históricas: “Beija-flor tomava banho / na piscina do vizinho. // Adiantou cerca de arame, / plantar flores com espinho?”. A densidade do poema flutua numa linguagem que nasce na fala cotidiana e corporifica-se na beleza delicada da metáfora. Riso, desafio e encanto. Eis a magia, uma das vertentes de Asa de passarinho.

Em “Cachoeira” o rio do tempo também se mostra contestador: “Serpenteia, / faz curva, / muda o rumo, / quando sente / que o impedem / de andar. // Todo rio / que se preze / fecha os olhos / e pula”. O salto do rio, no escuro, desaguando em cachoeira, é prenhe de significações. E o ritmo dos versos, intercambiando três e duas sílabas, iconiza estes momentos/movimentos de superação.

O nonsense, recurso tão caro aos universos infantil e poético, está presente em “Desperdiçado de cor”: “O que mais tenho vontade / é de rasgar ao meio a tarde / pra guardar o azul / no bolso”. O sublime agasalhado na roupa em forma de poesia. Líria Porto é poeta encantada. E sabe como encantar seus leitores.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 14 de novembro de 2014, p. B-7.

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