sexta-feira, 20 de março de 2015

A música da poesia



por Amador Ribeiro Neto

Se a música está sob o domínio do significante, na poesia reina o jogo de palavras, conhecido como paronomásia, que é a correlação entre som e sentido. O som, associado à palavra, ganha e dá sentido(s). Fazendo um trocadilho, é o som ao redor. Ao redor da palavra: imagem, ideia, música.

Todavia, para Décio Pignatari, reverberando Pound, “a poesia parece estar mais do lado da música e das artes plásticas e visuais do que da literatura”.

Já, para Haroldo de Campos, “o que caracteriza a função poética é um uso inovador, imprevisto, inusitado das possibilidades do código da língua”. Afirmação que ressoa a de Jakobson: “em poesia, qualquer similaridade notável no som é avaliada em função da similaridade e/ou dessemelhança”.

Para T.S. Eliot “a música da poesia não é algo que exista à margem do significado. Do contrário, poderíamos ter poesia de grande beleza musical que não fizesse sentido, e jamais me deparei com tal poesia. Há poemas nos quais somos inebriados pela música e admitimos o sentido como correto, assim como há poemas nos quais prestamos atenção no sentido e somos envolvidos pela música sem que disso nos apercebamos. A música da poesia dever ser a música latente na fala comum de sua época. E isso significa também que ela deve estar latente na fala comum da ‘região’ do poeta”.

E continua: “A música do verso não constitui um assunto possível de ser tratado verso a verso, mas uma questão que se refere à totalidade do poema. Apenas com isto em mente é que podemos abordar a controversa questão do modelo formal e do verso livre. Nenhum verso é livre para alguém que deseja executar bem seu ofício. Somente um mau poeta poderia escolher o verso livre enquanto libertação da forma. As propriedades da música que mais interessam ao poeta são as da noção de ritmo e de estrutura”.

Finalizando, T.S. Eliot observa: “O uso de temas recorrentes é natural tanto na poesia quanto na música. Há no verso possibilidades que comportam certa analogia com o desenvolvimento de um tema por diferentes grupos de instrumentos; há num poema possibilidades de transições comparáveis aos distintos movimentos de uma sinfonia ou de um quarteto; há possibilidade de arranjo contrapontístico com relação ao tema. É numa sala de concerto, mais do  que numa casa de ópera, que a matriz de um poema pode ganhar vida”.

Para o Futurismo, segundo Krystyna Pomorska, “o ponto principal da estética” é a “palavra em seu aspecto sonoro, como o único material e tema da poesia. Foi o Simbolismo que apontou em primeiro lugar a função fundamental do som na poesia, atribuindo-lhe uma função semântica e epistemológica”.

E segue: “Para os simbolistas a poesia devia-se igualar à música”. Para os futuristas “o elemento sonoro é igualado aos elementos pictóricos, figuras e linhas geométricas, tornando-se assim um fenômeno independente a ser experimentado e fruído como a única poesia, pura e verdadeira. Assim, os futuristas lutaram pela ‘palavra pura’, sem relação com qualquer função referencial ou simbólica, no que diz respeito ao objeto. O conceito futurista de poesia advém do conceito de ‘arte sem objeto’, dos cubistas”. 

O próprio Platão pergunta n’A República: “o que são os versos dos poetas sem o colorido que lhes empresta a música?”. Quando Platão indaga o que sobra da poesia sem a música, certamente já distingue, com acerto, um procedimento que os semioticistas russos, no início do século XX, viriam definir com uma precisão atualíssima: a linguagem poética distingue-se da linguagem prosaica.

Certo: tocam-se, entremeiam-se, sobrepõem-se, associam-se, mesclam-se – mas sempre uma e outra são uma e outra coisa. Nesse emaranhado terminológico envolvendo prosa e poesia chegamos a falar em prosa poética, poesia em prosa, “proesia”. Mas no fundo, perdoem-me o clichê, mas no fundo, prosa e poesia são dois bicudos que se beijam. E continuam sendo dois bicudos.

Um amálgama de sons paga evidentemente tributo às conquistas da Semana de Arte Moderna de 22. Dentre as conquistas de 22, sem dúvida, os maiores méritos devem ser creditados a Oswald de Andrade com a propalada deglutição de “só me interessa o que não é meu”. A Antropofagia, sabemos, gerou um produto nacional (e internacional) líquido com qualidade de exportação – como bem notaram e anunciaram Augusto de Campos e Haroldo de Campos.

A Antropofagia, ao adotar como ponto estético e estratégico de seu programa o sincretismo, abriu espaço – entre outras coisas – para cores e sons, sons e sentidos até então presentes na voz do povo, na voz do morro, na voz da metrópoles, mas ainda não ouvidos – e inauditos – na poesia brasileira. Exceção feita à “transpolifônica” (se me permitem o neologismo) poesia de Gregório e de Sousândrade – dois dos cinco maiores poetas da literatura brasileira.

Bem, eu dizia, que esta mistura de raças e culturas num caldeirão do vale-tudo gerou ritmos nossos nascidos do amálgama de todos os ritmos. As melodias indígenas, africanas, caribenhas, europeias, norte-americanas e até orientais, deixaram marcas na música de nossa poesia.

A propósito deste caldeirão de ritmos advindos de povos que se misturam, lembra-nos T.S. Eliot: “há uma lei da natureza mais poderosa do que quaisquer tendências variadas, ou influências vindas de fora ou do passado: a lei é de que a poesia não deve se afastar demasiado da língua comum diária que usamos e ouvimos”.  E completa: “Seja a poesia rítmica ou silábica, rimada ou não rimada, formal ou livre, ela não pode dar-se ao luxo de perder o contato com a linguagem mutante da conversação ordinária”.

Em outro ensaio, o mesmo T.S. Eliot complementa esta ideia: “a emoção e o sentimento são melhor expressos na língua comum do povo, isto é, na língua comum a todas as classes: a estrutura, o ritmo, o som, o modo de falar de uma língua expressam a personalidade do povo que a utiliza”.

Este foi um dos itens da cartilha da Modernidade e, no nosso caso, do Modernismo: desentranhar a linguagem poética da fala prosaica. A bem da verdade, ao longo da História, vários movimentos que reivindicaram revolução na poesia acabaram postulando uma volta à fala comum. Talvez porque a língua falada seja um organismo dinâmico, ao passo que o idioma envelhece em sua normatividade gramatical.

Barthes já nos advertiu que literatura é “trapaça com a língua”.  Daí depreendemos que o poeta deve falar a língua de sua época e dar ao leitor a oportunidade de concluir: “assim é que eu falaria se pudesse falar em verso”, como sintetiza T.S. Eliot. Isto talvez justifique por que curtimos tanto a poesia contemporânea e por que ela nos dá a sensação de plenitude – muitas vezes, mais até do que a poesia de outras épocas históricas.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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Um comentário:

  1. Amador disse bonito e bem a lição do modernismo: do verso metrificado ao ritmo, do ritmo ao espaço da página, e se temperar com a concisão, maravilha! Leminski viu bem esse lance de Oswald via Augusto de Campos. Arnaldo, por sua vez, bebeu dos três pra criar sua lavra. Antonio Candido diz quase o mesmo, quando explicou a importânci da estrutura e do império do ritmo. Acredito que a deglutição de todos esses repertórios fortaleceu a poesia brasileira, atualizou-a, pela ótica de Mukarovski. Sorte nossa!

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