terça-feira, 5 de maio de 2015

Jorge Mautner: duas canções

 Jorge Mautner - ilustração de Reginaldo Farias

por Amador Ribeiro Neto

Mautner tem um lugar especial dentro da MPB. Um lugar reservado a poucos. E usufruído por raros. Certa vez interroguei Décio Pignatari sobre Mautner. O poeta, como sempre, assertivo, conciso e ácido, acionou uma vez mais sua metralhadora verbal: “Mautner não conta: ele quer permanecer amador em tudo que faz”. Senti os tiros reverberando em mim também. Não retruquei. Conhecia o querido professor e sua verve.

De fato, o mercado (musical ou literário) nunca esteve em meio às (pre)ocupações de Mautner. Ele gosta de ser gauche na vida. Curte não se profissionalizar. Desfralda a bandeira do udigrúdi até hoje. Só assim pode continuar fazendo por amor, sem compromissos, sem vínculos, sem profissionalizar-se. Anárquico e defensor do Kaos, gosta de provocar seu escasso público. Com fina ironia. E boa dose de sarcasmo. Sem desconsiderar o humor, é claro.

Compôs e interpretou genialmente uma série de canções homossexuais (que os politicamente corretos de plantão preferem chamar homoeróticas – como se a semântica mudasse a essência da questão). Suas letras, melodias e performances (da voz, dos arranjos e gestuais) são um caso de amor & delícias na cena de nossa canção. Elã que Ney Matogrosso soube canalizar para si (corpo, voz, vestuário, adereços, coreografia) desde os tempos dos Secos e Molhados.

Depois de ter publicado aqui mesmo no Correio das Artes um artigo sobre suas canções homossexuais – algumas das quais aproximei-as da poesia de Mário de Andrade – há duas novas canções que gostaria de comentar, ainda que en passant.

“Encantador de serpentes” (parceria com Robertinho do Recife) tem acordes melódicos da música oriental clichezada, para uma letra provocativamente ambígua: 

sobe a cobra
a cobra tem de subir
sobe cobra
mas ela não quer subir
lá na Índia todo mundo sabe
é mandinga do faquir
saber tocar a flauta e fazer a cobra subir
Por isto eu toco esta guitarra
e tento conseguir
um jeito uma alma  nova
de ver subir a cobra

O coro feminino faz o refrão e incita a cobra a subir. A permuta (com consequente atualização) da flauta do faquir indiano pela guitarra do cancionista brasileiro é a transposição fálica do mesmo objeto para culturas e geografias diversas.  E “subir a cobra” é a metáfora (quase catacrese, de tão óbvia) para ereção. A guitarra de Robertinho do Recife recorta acordes e timbres orientais e soma-os a levadas roqueiras. A canção visita velhos tempos e lugares para abordar velhas (e atuais) questões da sexualidade universal.

Oriente e ocidente na mesma linha do horizonte erotizado pela magia da música e pelos movimentos das imagens que percorrem o corpo e o imaginário orgástico.

“Vida cotidiana” (parceria com Nelson Jacobina) é cantada, canto-falada e, por fim, falada – em isomorfismo perfeito com o cotidiano de todos nós. Isto já confere a ela uma distinção: o cancionista não é apenas um malabarista aqui, mas um show-man full-time. Mais uma vez a ironia vaza a letra através da paródia dos comportamentos sexuais e sociais e no cruzamento das vozes da canção, acolhendo o bakhtiniano dialogismo cultural. Diz a letra:

a uma você fuma
às duas vai pras ruas
e às três telefona pra inês
 – alô benzinho vem correndo que eu guardo uma surpresa pra você,  é...
 –  [alô benzinho vem que te aguarda uma surpresa....]
 às quatro faz cena de teatro
às cinco fecha a porta com trinco
e às seis o problema é de vocês
– eu falei pra você não falar nada pra ele nem nada pra ela
v. falou agora o problema é todo seu resolve, resolve, quero ver
–  [eu te falei não fala pra ele não fala pra ela
tu falou agora o problema é todo teu orra meu]
às sete você vira um travesti vedete
às oito você fica um chuchu biscoito
às nove você ama e se comove
às dez eu te faço cafunés com os pés
às onze você faz cara de pau olhos de bronze
às doze você faz aquela pose
 – v. quer uma rosa ou uma rose
ou quer um bichose
“eu vou imitar um avião”.

Caetano Veloso, que participa da gravação, canta em falsete comentando o lado homossexual das personagens envolvidas na trama da letra. A sequência em que os intérpretes dialogam à base de imitações, as mais variadas (de animais ao bebê humano, passando por ambulâncias e metralhadoras), é hilária. E, como se não bastasse, fecha-se com a citação de um verso de Raimundo Correia, saudando as pombas. Pelo contexto da interpretação e da letra, depreende-se que as tais pombas já não são as cantadas denotativa e ingenuamente pelo poeta romântico – mas aquelas referidas hilariamente no universo da sexualidade. (Em sentido chulo, anotam os dicionários).

Para fechar a cena,  o cancionista Jorge Mautner encerra a faixa com longos e exclamativos suspiros. Seu companheiro de interpretação, Caetano Veloso, repete: “pombas, pombas, pombas...”.

Para Jorge Mautner, em suas interpretações e/ou composições, a performance homossexual está associada à sedução, ao lirismo e ao humor. Como se nele ressoasse sempre o poema oswaldiano: “amor humor” + o erotismo de Hilda Hilst mesclado ao de Caio Fernando Abreu.

Um dos talentos menos reconhecidos da MPB, e rotulado de ‘maldito’, Jorge Mautner é de fato um rei da canção homossexual, um cancionista que equilibra o texto na melodia e a melodia no texto para fazer amar e rir.

Um dia, esperemos que não tão distante, sua obra mereça o reconhecimento estético e ético a que faz jus desde 1959, quando compôs a antológica “Vampiro” – uma canção em que a homossexualidade se traveste em óculos de sol para  sugar “o sangue dos meninos e das meninas”, além dissimular, mais uma vez, uma performance da paixão, porque  o outro “é uma loucura em minha vida / uma navalha para os meus olhos”

Mautner é riso, festa, regozijo, amor. Perversão e não-lei. Desejos & orgasmos múltiplos. Alegria à revelia. Carnaval na quaresma da cultura oficial brasileira. 

Escute as duas canções:

“Encantador de serpentes”:


“Vida cotidiana”:

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Publicado pelo Correio das Artes, abril/2015, ano 66, nº 2, suplemento literário do jornal A União, de João Pessoa, em 26 de abril de 2015, na coluna Festas Semióticas.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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