quarta-feira, 6 de maio de 2015

Orson Welles por Glauber Rocha



Grifo nosso # 86

Orson Welles

“Se Orson Welles recusa o cinema como instrumento de criação, não é por falta de crença no fato fílmico.

Sua indignação é a impossibilidade  em dispor desses meios com os quais poderia alcançar uma Nova Dimensão, a região interpretativa ainda indevassável da existência do homem sobre a Terra.

Quando se fala no ‘imponderável’ que a câmera poderia descobrir e a montagem poderia criar (tornar ‘ponderável’, ‘real’), muita gente pensa que se trata de uma utopia ou de uma atitude ‘formalista’, como se esse ‘formalismo’ fosse reacionário.

A busca do ‘imponderável’ cinematográfico jamais foi o alienado jogo da forma na forma, do plano no plano ou da luz na luz, embora tais conflitos abstratos valham como a melhor pintura moderna não figurativa.

Recusa-se uma existência formalista para o cinema porque seu próprio e incontido poder de criar no conflito a problemática imprevisível leva até mesmo o intencional jogo da forma pela forma abstrata de criar uma Entidade.

Partindo daí (e numa sala de montagem temos verificado que o princípio teórico se realiza na prática) podemos romper com o cinema narrativo-literário e partir para aquele em que a câmera e a montagem CRIAM uma dimensão fílmica sobre o tema e não CONTAM uma Heuztória com pré-existência literária.

Depois de Eisenstein, nunca um cineasta foi tão fílmico como Orson Welles.

Aos que veem a importância do participante do cinema nos conflitos sociais e no complexo humano, essa observação torna-se fundamental para destruir a acusação pejorativa do formalismo.

Se Eisenstein foi o maior intérprete da revolução soviética e das transformações radicais trazidas pelo socialismo, OW é o maior intérprete da tragédia imperialista.

Seu tema preferido foi o poder configurado no Homem, à maneira de Einsenstein em Alexandre Nevski [Alekandr Nevskii, 1938] e nos Ivans [Ivan, o Terrível/Ivan Groznyi, 1944, e Ivan, o Terrível/Ivan Groznyi, Boyarskii Zagovor, 1945].

OW se postou no ataque vigoroso ao homem corrompido pelo poder e sempre derrubou esse Ditador com a força de quem abate e destrói um verme.

A denúncia vai até a derrubada, através do simbolismo fílmico, embora o tema continue quando finda a intriga.

OW não interpreta uma transformação à maneira de Eisenstein, porque essa revolução não se passou nos Estados Unidos.

Mas OW ‘provoca no filme’ essa derrubada, abre possibilidades de revolucionar sem nenhum dogmatismo, crente na absoluta corrupção desumana dos poderosos.

OW detesta e esmaga o chefe de imprensa de Cidadão Kane [Citizen Kane, 1941], como o chefe de polícia de Touch of Evil [A marca da maldade, 1958], ou Othello, Macbeth, Arkadin e bufões como Falstaff. Nota: Personagens dos filmes: The Tragedy of Othello: the Moor of Venice [Othello, 1952]; Macbeth [Macbeth, reinado de sangue, 1948]; Mr, Arkadin ou Confidential Report [Grilhões do passado, 1955] e Chimes at Midnight [1965].

Desmistificou a genialidade e se transformou no alter ego dos Estados Unidos.

Poderia OW ser tão poderoso, não fosse através de ‘seu estilo’?

Hollywood expulsou OW.

Na Europa ele filmou Kafka, metáfora da verdadeira história de famílias Ambersons Kennedy [The Magnificent Ambersons/Soberba, 1942; Le Procés/O processo, 1962].

Quando Orson Welles filma Cidadão Kane, os Estados Unidos estavam em guerra aliados com a União Soviética contra o Nazifacismo.

Cidadão Kane é o sucessor de O grande ditador (Chaplin, 1940).

Montagem tonal e dramática do movimento psicológico de personagens inconscientes do processo materialista da história dentro de uma natureza alienada e de uma cenografia alienante.

Kynema é linguagem total devido à imprevisibilidadimaginária que se manifesta com maior frequência na linguagem audiovisual do que na literária.

A montagem narrativa produziu um efeito ilusório da História que levou o teórico André Bazin a ver na Profundidade de Campo um espaço psicológico que exclui o tempo social da História.

André Bazin supervaloriza a montagem tonal dramática (montagem interna de origem literoplástica) e idealiza a montagem externa como divisor e unificador dos tempos da mise-en-scène neurótica dentro do plano em campo profundo, técnica desenvolvida por Orson Welles em Cidadão Kane.

As lutas de classes estão ausentes do processo que leva Kane a herdar uma fortuna, casar com a sobrinha do Presidente, se candidatar a governador de um Estado e criar estética na figura de sua fracassada mulher cantora de ópera.

Welles faz uma crítica psicológica e não econômica de Kane, metáfora de poder fálico imperialista, mas explica o poderio econômico pela paranoia política frustrada.

Rosebud, Tema Psicológico, e não a luta de classes nos Estados Unidos e no mundo, Tema Histórico, é infra-estrutura, temática de Kane, coincidente com a explosão nuclear de Ivan II.

No fluxo fílmico de Kane a luta de classes se reflete na psicologia mística do autor/personagem que a ela não se refere porque despreza o escravo.

O proletário é a consciência do narrador interpretado por Joseph Cotten, alter ego de Kane, o Rosebud pobre e velho no sanatório feliz.

No campo profundo de Welles se processam contradições interimperialistas.

Um capitalista pode matar o outro mas nunca destruir o sistema que deve ser defendido contra o fantasma ausente do proletariado.

O imperialista Kane morre e Welles filmonta a reconstituição psicológica  de sua História identificando o indecifrável mitonironanista, Rosebud, processo cosmetafórico de personagens.

O limite dialético é estabelecido pelo método de investigação retórica que não desestrutura o mito Rosebud.

A montagem Kubexpressionista de Kane materializa uma concepção circular da História cheia de som e fúria contada por um idiota que não significa nada.

É o clímax shakesperiano, Othello, Calibán de Welles.

O expressionismo alemão gera uma estética fenomenológica cuja função é mascarar a História na linguagem que em Hollywood substitui a economia, a sociologia, a política, a psicanálise, a linguística, a antropologia e a filosofia pela psicologidealista freudiana, espaço social em tempo social.

É Quinlan, é Arkadin, é Macbeth, é Othello, é Falstaff, é Don Quixote, é o Diabo, é Kane, é Roosevelt, é Truman, é Rockfeller, é Júlio César, é Hitler, é Stálin, é Welles!”
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Glauber Rocha, no livro O século do cinema (Editora Cosac Naify, 2006).

Postagem do dia 06 de maio de 2015: dia do centenário de Orson Welles (nascido no dia 06 de maio de 1915).

Outras postagens no blog O Berro:
- Cidadão Kane na Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais
- Soberba, filme de Orson Welles
- O Estranho, filme de Orson Welles
- Revista de Cinema, ano I, nº 05: uma matéria sobre Glauber Rocha
- Um pouco sobre Deus e o diabo na terra do sol
- Algumas palavras sobre Terra em transe, de Glauber Rocha.

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