quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Corpo de festim



por Amador Ribeiro Neto

Há um ano, assim abri minha coluna: “Alexandre Guarnieri (Rio, 1974) é Mestre em Tecnologia da Imagem pela Escola de Comunicação da UFRJ e arte-educador. Um dos editores da prestigiosa revista eletrônica Mallarmargens. Estreia na poesia com Casa das Máquinas (Rio de Janeiro: Editora da Palavra), num belo projeto gráfico que faz jus à formação do poeta.

No entanto, enganam-se os que supõem ser a imagem a força de sua poesia. Não é. Ainda que presente, junto a um elaborado jogo de sonoridades, é o elogio da ideia que perpassa o livro enquanto dominante.

E aí reside um dos grandes méritos de Alexandre Guarnieri: aventurar-se pelo enredado universo temático, tomando-o como matéria da produção de sua poesia. Não é fácil, mesmo para poetas veteranos, a confecção de uma obra monotemática. Mas se o tema é uno, o poeta sabe extrair dele várias nuances, assegurando ao livro uma multiplicidade de enfoques”.

Pois bem, hoje, com Corpo de festim (Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2014) retomo estas palavras para reiterá-las. O poeta continua privilegiando a abordagem monotemática, num admirável domínio da linguagem poética. Tudo em seu livro é motivo de descoberta, redescoberta e alegria pelo novo. Encanto diante de soluções desestabilizadoras da mesmice cravada em grande parte da produção de poesia hoje no país.

Sua poesia seduz pela maturidade e pela materialidade da palavra. Em Corpo de festim, Guarnieri toma o corpo humano em sua biologia mais anatômica, embrenha-se em suas partes, das mais viscerais às mais expostas, para fazer dele um signo de signos da vida humana. Finitudes e complexidades. Objetivismos e subjetividades. Disseca o óbvio do corpo e nos revela o inesperado da linguagem.

Significativamente a metáfora é uma das parcas figuras de sua poesia. E, no entanto, o livro todo é metafórico. O que diz, e o modo como o faz, remetem o leitor a uma antropo-biologia que disseca a vida do homem uno e plural. De agora e desde sempre. E para um futuro.

Não há como não maravilhar-se com a maturidade de uma poesia que, desde o livro de estreia, carrega a logomarca de uma estética vigorosamente singular.

Apenas dois livros e temos um poeta cuja dicção está configurada. Seu lugar na literatura brasileira contemporânea está assegurado. Repito: não há como não ignorar o corvo de sua produção no trigal da poesia de hoje. Por isto mesmo Mauro Gama, depois de citar Casa das máquinas e, ao comentar o recente livro, observa: “A nosso ver, a perspectiva do poeta se aprofunda, avança mais fundo na mesma problemática, confirmando desse modo a posição de seu trabalho na linha de maior criatividade da criação poética brasileira pós-cabralina”.

É notável o modo como o poeta reapropria-se e recicla Augusto dos Anjos, trazendo a modernidade do poeta paraibano para a cena do século XXI em meio a construções imagéticas que lembram as HQ’s. O cinema do corpo, do inquietante e cruel Nagisa Oshima, também é referenciado.

O universo tipográfico aparece na metalinguagem da tinta que tinge de vermelho o branco morto do papel. Bem como é explorado com vigor e alta taxa de informação na estrutura visual do volume. Símbolos são transformados em signos mutantes. O leitor é convidado a ser cúmplice na coautoria da obra. Afinal, o corpo é de cada um. E de todos nós.

O escritor Furio Lonza declarou que Corpo de festim é o melhor livro de poesia publicado nos últimos dez anos. E concluiu: “por isto mesmo não vai ganhar prêmio algum”. Aproveito pra retomar o que disse na coluna anterior: é incompreensível que o melhor livro de 2014, e um dos melhores dos últimos anos, não esteja entre os semifinalistas do Prêmio Oceanos 2015.

A leitura de Corpo de festim é o melhor presente que o leitor mais rigoroso, sensível e inteligente de poesia brasileira contemporânea, pode dar-se. 
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 09 de outubro de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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