terça-feira, 27 de outubro de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma



por Harlon Homem de Lacerda

Chegamos ao Mutúm. Chegamos à casa de Miguel e Expedito. Chegamos ao registro de maestria subjetiva, linguística e literária de João Guimarães Rosa. Como essa maestria é sentida de maneira muito parecida em toda a ficção rosiana, chegamos ao “Campo Geral” – a estória que abre o Corpo de Baile. O conjunto de estórias do Corpo de Baile impressiona tanto pelas estórias mesmas, como pelas personagens, pelo caráter cíclico em seu fechamento com Buriti. Luiz Roncaria lembra o plano de criação de Corpo de Baile dizendo que tudo se passa em um dia – “Campo Geral” sendo aquela manhã brumosa e que vai se acabando nas noites eróticas de Buriti.

Quem garante esse caráter cíclico surgindo na primeira estória e voltando na última, já adulto, é Miguel. Miguel? Expedito, eu falei? Miguilim. A criança paradigma. O espírito mais terno que tenho notícias nessa nossa literatura. Dito, irmão de Miguilim. Há quem diga que Miguilim é o próprio Guimarães Rosa, vários críticos nomeando isso junto a Vilma Guimarães Rosa, quem mais insiste nisso (aliás, Vilma Guimarães Rosa insiste em muitas coisas em seu Relembramentos). Miguilim é um menino sensível ao extremo e que descobre no final daquela manhã brumosa, o motivo das brumas: miopia – como seu criador, o menino Guimarães. Mas há muito mais do que a simples anotação biográfica no “Campo Geral”, há uma poesia redentora, há a representação de uma realidade cruel incrustada no pai de Miguilim, na mãe que sofre com a impossibilidade da felicidade, no tio Terez que sofre com a impossibilidade do amor, na Mãetina que sofre, simplesmente. A estória (que seja conto seja novela) carrega a novidade do mundo nos olhos de Miguilim. Edouardo Bizzarri, o tradutor italiano de Corpo de Baile (Corpo di Ballo), correspondia-se com Guimarães Rosa, dizendo-se seu Miguilim – um menino na aurora da descoberta, na força que o despertar tem, no medo infantil de tudo e no trabalho que já começa desde cedo.

Falar de “Campo Geral”, da estória de Miguilim e Dito, é plasmar-se diante do belo, chorar junto a uma perda anunciada e, por isso mesmo, perversa. Nem não vou contar o que se passa com Miguilim, nem com Dito, eu quero é vocês leiam, mas leiam deitados numa rede, sem hora marcada, sem página certa. Leiam com o coração todo aberto a estória de Miguilim. Chorem, emocionem-se que vale, vale a catarse de uma vida tão difícil, vale a purgação de tudo.

Para mim, essa estória tem um traço muito especial por que foi por conta dele, de Miguilim, que comecei a prestar atenção em Guimarães Rosa. Foi por conta dos Miguilins, crianças que decoram as estórias de Guimarães e contam aos visitantes do Museu Casa de Guimarães Rosa, em Cordisburgo, que eu decidi que minha vida acadêmica seria agora totalmente voltada para o estudo da ficção de Guimarães Rosa. Decisão completa de sentimento, de inspiração, de serendipity – como talvez gostaria o Joãozito. É possível que quem for ler “Campo Geral” hoje tenha uma revelação parecida com a minha, é possível que não, só não é impossível ficar sem ler, uma vez na vida, pelo menos, a estória de Miguilim – nome que eu faço questão de repetir igual um Papaco-o-paco.
____

Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Ruminando
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Corpo Fechado
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Toda crença tem seu santo
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Minha Gente
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Marcha estradeira
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Febre e Mato
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Sapo ou Cágado?
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ - Sobre ‘O burrinho pedrês’
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ - #somostodosJoãoCondé

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário