quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Bocas de lobo



por Amador Ribeiro Neto

Rosana Piccolo (São Paulo, 1955), formada em Filosofia pela USP e em Jornalismo pela Cásper Líbero, é publicitária e poeta. Publicou Ruelas profanas (1999), Meio-fio (2003), Sopro de vitrines (2010), Refrão da fuligem (2013). Bocas de lobo (São Paulo: Editora Patuá, 2015) é seu mais recente livro.

Embora conhecesse um ou outro poema de Rosana Piccolo, nunca havia lido um livro seu. Grande foi minha surpresa com o poema inicial de Bocas de lobo. O mundo do crack, a metáfora dos vaga-lumes lazarentos e o cenário de devastação urbana tecem o pano de fundo de uma tristíssima São Paulo, cidade tomada como tema deste belo livro.

Este poema, intitulado “Quadrilátero”, lança a geografia da miséria humana para os quatros cantos do mundo. Cito-o: “pétala roxa no canto da boca, tão cruel / a queimadura do cachimbo: / petúnia da lepra // lázaros, onde o aviso? / não vos pisa o cavalo da polícia / com medo do contágio // onde o milagre / que derrote a sepultura? // Valha-me, Nossa Senhora da Luz / farol da névoa selvagem / teu fértil altar // já não enxergas o rosto / de teus vaga-lumes vagantes / ruas fumam teus olhos / como duas pedras ardentes”.

Se o leitor imagina que tal poema foi selecionado pra abrir o volume devido à sua alta voltagem poética, em detrimento de outros, engana-se. Os seguintes também impactam a leitura. Uns com mais força. Outros, raros, com menos. Mas, sempre: poemas impactantes, de intensa força expressiva. Estamos diante de uma poeta que conhece rigorosamente a concretude da palavra. Bem como sua materialidade física de som e sentido.

Rosana Piccolo arquiteta a poesia num rol de metáforas e adjetivações. Isto é perigoso. Corre-se o risco de não dizer o que deseja, esvaindo-se em diluições figurativas excessivas e prolixas.

Mas o efeito de tais recursos em suas mãos é bem outro. Ela suga o melhor da linha limítrofe entre o apelativo e o estorricado. A emoção que sua poesia desperta advém do corpo a corpo com a urbanidade paulistana, numa linguagem que detona o olhar autômato. 

A poeta desmonta cenas e sequências triviais. E monta-as com reveladora beleza cotidiana. Vejamos “Largo dos curros”: “é triste a Praça da República / sob a burca da noite // palitos do poste / desenham bonecas platinadas / fantasmas de talco / dialeto de violetas na boca / dos meninos / em camas de papelão // é triste a Praça da República / ao microfone do último metrô // não o ouvem as estátuas, atentas / ao mugido de um touro assassinado / nunca dirão o que sabem, as estátuas / e que não esquecem”. A tomada cinematográfica da praça capta seus movimentos e arredores. E recria, sem dó nem pena, um dos pontos cardeais da cidade.

Rosana Piccolo tece contundente crítica social. Sua poesia, em Bocas de lobo, é engajada. Mas o engajamento é feito, concomitantemente, com tema e forma. A dimensão avassaladora de sua poesia advém, dentre outros fatores, deste convívio árduo e absorvente, com as vísceras da cidade. Seus versos, densos, tensos e arrochados, cativam e capturam o leitor mais exigente. Aquele que sabe que a poesia é transformação. Revela este mundo e cria outro, como quer Octavio Paz.

Não há meio-termo na poesia urbana de Rosana Piccolo, feita de caos e cacos. Fragmentos e sequências. Becos, ruas, avenidas, praças, edifícios. Lugares escuros, recônditos e suspeitos. Quando a luz surge, é oblíqua. E segue cortante, num humor agudo. Cito “Joia da chuva”: “licores do semáforo / jornal em preto e branco / é a cidade, rush de noivas e limusines // a chuva é uma baú de tesouros / chaves, buquê de aços inúteis // alvejar o verso / com a mira / do atirador de facas // escrever como as águias”. Escrita certeira. Alvo certeiro. Caro leitor, lance-se nas bocas de lobos desta cidade. Desta poeta e tanto. Sem medo da nova poesia brasileira.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 13 de novembro de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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