terça-feira, 24 de novembro de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Conta quem conta



por Harlon Homem de Lacerda

Rapaz, e se esse monte de conto e novela e romance e estória dos quais estamos tratando aqui com tanto carinho, com tanta atenção, não fossem de Guimarães Rosa? Ou, e se Guimarães Rosa não fosse diplomata, alto funcionário do Itamaraty? Ou, e se esse mineiro da grande família não tivesse morrido três dias depois de se tornar imortal da Academia Brasileira [sic] de Letras? Ou, mais uma vez, e se ele mesmo não tivesse adiado a posse na Academia achando que, logo que tomasse posse, morreria? Já pensou, se Guimarães fosse do Cariri? Se fosse um servidor público de alguma repartição pequena de algum interior esquecido? Ou se nem não tivesse sido amigo de José Olympio, nem fosse conhecido lá pelo centro do mercado editorial? Será se, com alguma dessas condicionais, estaríamos tratando do mais renomado e lido e comentado escritor da Literatura Brasileira? Tenho cá minhas dúvidas! A principal é por que eu tenho lido a fortuna crítica dele e quase todos os doutores e doutoras que estudam a obra de João Guimarães se pegam, com todas as garras, no fato de ele ter sido extremamente culto e de ter sido embaixador. Parece que insistem nisso como se fosse uma condição sine qua non para determinar a força de sua narrativa. Parecem esquecer que ele é do sertão. Parecem esquecer a influência direta e absoluta do universo sertanejo para o desenvolvimento não apenas temático, mas formal da obra de Guimarães. Um exemplo disso é o “Recado do Morro”, primeira obra da segunda parte do Corpo de Baile, No Urubuquaquá, no Pinhém.

Tem gente que insiste, por exemplo, em dizer que Guimarães recebeu influência direta de James Joyce, naquela velha atitude colonialista de dizer que o que é bom pra gente é porque veio de fora. Valei-me, meu Padim Ciço! Eu fico doidin quando leio essas bobagens! Guimarães Rosa pode ter tido influência de tudo no mundo, da literatura inglesa até a filosofia Xintoísta, mas a matéria vertente de sua literatura tá lá em Minas, tá lá no armazém de seu Florduardo, tá no sertão, tá no Brasil. Quando lemos o “Recado do Morro” sentimos a força da cultura sertaneja saltando com a força de Pê-Boi, que pra gigante só falta uns cinco centímetros, diante de nossos olhos. A apropriação de uma narrativa feita sob várias formas, a partir de vários narradores, diante dos olhos de todos no sertão e que só chega ao ouvidos de Pedro Orósio, depois de depurada, retrabalhada e cantada na viola de Laudelim. A viagem que o recado dado pelo morro faz do Guégue até a compreensão de Pedrão Chãbergo é a viagem da literatura brasileira. De um espaço, de uma paisagem que ganha vida unicamente através do povo para ser compreendida por esse mesmo povo. Em o “Recado do Morro” a estória de uma traição, de uma morte à covardia, é recontada de todas as formas possíveis e trecontada pelo narrador rosiano, que captura da vida e torna vida através da forma, das formas.

Se algum daqueles viajantes tivesse a chance de ouvir o sertão, de ouvir o morro da Garça, da Graça divina, do milagre nem talvez tivesse sido necessária tanta volta, mas foi preciso um que tivesse a sensibilidade para ouvir o sertão, para ouvir o morro e passar de boa em boca, pelos loucos e cantadores para o recado se tornar mito, o mito se tornar canto e o canto se tornar logos para depois se tornar mythos na forma e no conto de João Guimarães Rosa.

Desculpe-me o Ulysses, o Dublinenses, o Retrato do artista quando jovem, o Finnegans Wake. Desculpem-me os doutorzinhos neurastênicos das capitais, mas Guimarães Rosa era vaqueiro, era do sertão. Por isso sua força, por isso a capacidade de ter reinventado a dado vida à Literatura Brasileira: porque bebeu ele da fonte que dá vida a este país – o sertão. Se vale o cheque pela sua assinatura, quem conta aqui é aquele que narra, quem dá o recado é o morro, é o sertão, é o povo. Conta quem conta e quem reconta e quem treconta. 
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma
- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Ruminando
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Corpo Fechado
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Toda crença tem seu santo
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Minha Gente
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Marcha estradeira
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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Sapo ou Cágado?

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