quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Ao abrigo



por Amador Ribeiro Neto

Ronald Polito (Juiz de Fora, 1961) é professor, editor, tradutor e poeta. Ao abrigo (Belo Horizonte: Ed. Scriptum, 2015) é lançado nove anos depois de Terminal. Resultado de tamanha maturação: poemas densos e marcados por uma dicção singularíssima. As imagens sobrepõem-se e enrodilham-se num vaivém de fios degradés que amalgamam ideias e formas. Tudo sobre um mesmo patamar: o cotidiano besta, ao avesso. E dito com sublime e contumaz homogeneidade. Ao fundo, fina música. Aquela que se imiscui, oblíqua, na interação entre imagem e sentido. Com rigor contundente e, ao mesmo tempo, leve. Marcas d’ água da poesia de Ronald Polito.

Uma poesia feita de cortes imagéticos e interrupções sintático-sonoras. Que trazem ações e sentimentos para o close da tela. Em uníssono. Cito “Alvíssaras”: “Depois do ponto que deixa a última palavra. / Asas, espelhos, remoinhos, encruzilhadas. / O pôr do sol se esgarça. / Uma pétala se espalma. / A lua a pino, opiácea. / Infinito final”.

Não há enjambement: cada verso termina por um ponto final. Os que abrem e fecham o poema são conceituais. Os intermédios, descritivos. Em todos, há montagem cinematográfica. Ora reflexiva, ora prática. Diria mais: eisensteiniana e dialética. Sempre girando em torno da figura do ponto. Que, paradoxalmente, é “infinito final”, tal como o mundo. Tal como os mundos, a poesia e os poemas.

Em tempo: metalinguagem de um sinal de pontuação é requinte da mais fina filigrana. O poeta já havia nos mostrado, em A galinha (2014), que é capaz de surpreender a partir do mínimo e do trivial. Seus poemas, neste livro, são achados que investem na inversão do olhar ordinário. Com humor e beleza. Os animais são um pretexto para fazer linguagem poética e falar do homem semiótico.

Em Ao abrigo podemos dizer que o tempo e a linha do horizonte atuam como recortes de uma peculiar demarcação: uma, que é geográfica, e outra, que é diacrônica. O vocábulo “horizonte”, citado 16 vezes nas 47 páginas de poesia, chama a atenção para as várias acepções que abarca. A saber: desconstrução, destino, acomodação, amplitude, recolhimento. Etc. Só um toque: o poema “Mão dupla” abre com o verso “horizonte-abismo” e fecha-se, espelhado, com “abismo-horizonte”. Que, por extensão, é refletido e refratado em “o fim do fim” e “o fim do começo”, versos inicial e final de “Entre”. Título que é, ao mesmo tempo, verbo (no imperativo) e preposição.

Tal como as figuras recorrentes da pedra, dos pássaros, do caminho e das montanhas, o horizonte desloca o ponto de vista do leitor projetando-o, ora para o mundo pós-moderno de negatividades, ora para – e este é o grande fator diferencial da poesia – o núcleo duro da linguagem. Ronald Polito é um exímio “hacedor de mundos”. Alguns de seus poemas dialogam com Augusto de Campos (“Desengano”, “Encantamento”, “Saldo”), Haroldo de Campos/Octavio Paz (“Alvo”), Drummond (“Um deus”), T. S. Eliot (“Entre”), entre outros.

Projetado no design do rigor de linguagem, o livro abre-se com “Orações”. Lá pelo meio surge o “Discurso com orações”. E encerra-se com “Oração”. Tudo na mais fina acepção não religiosa do termo. O livro, ao tomar a poesia como matéria, elege a materialidade da linguagem como tempo e lugar de sua fisicalidade. Não há devaneios teológicos ou afins. Oração, aqui, é sentença. É verso. É poesia.

O erotismo, presença constante na poesia de Ronald Polito, ressurge, como sempre delicado e sutil, em “Atlas” e no poema sem título, que transcrevo: “em torno da água o copo / dois corpos / o quarto em torno do ar”. O fogo está presente em oposição à água. E como complemento ao ar. Mas sua grande força reside em ser subentendido como motor de Eros da linguagem. Daí o poema se inflama.

O percurso ao revés, na contracorrente da festa vazia, vaza “O que passa”, desde o título uma referência ao transitório e, ao mesmo tempo, ao que acontece (na vertente hispânica, tão ao gosto do poeta): “Sozinho / A caminho. / Nada nas margens. / Nem mesmo miragens. / E tudo é branco, adiante. / Não há nem pássaro que cante. / Para trás ficou todo o burburinho. / Vai em paz no meio do redemoinho”.

O leitor, que estava ao relento, com grande parte da produção de poesia hoje em nosso país, encontra seu porto seguro em Ao abrigo, de Ronald Polito. Vale!
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 27 de novembro de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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