quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Balde de água suja



por Amador Ribeiro Neto

Mauricio Duarte (São Paulo, 1981) é jornalista e poeta. Estreou em 2007 com Rumor nenhum, livro que já anunciava para o poeta observador e crítico que se configura no segundo título. Seu alvo: o cotidiano mais trivial. Seu produto: uma poesia de inusitada linguagem, que volve e revolve a língua coloquial, reinventando-a sem a necessidade de neologismos ou sintaxes invertidas. Tudo é simples. Seu diferencial está na apreensão do simples. No corte sagaz e sarcástico sobre cenas urbanas – ou sentimentos pessoais. Neste quesito ele está galáxias longe do rol enrolado e vazio de poetas que nada sacam de nada. E nada escrevem. A não ser, é claro, repetições entojadas da panaceia. E da pasmaceira.

Balde de água suja (São Paulo: Editora Patuá, 2015), recém lançado, desde o título aponta para o recorte irônico e sarcástico que Mauricio Duarte opera na vida e na arte. O poeta não apenas chuta o balde: ele espalha água suja na cara bem comportada da poesia de hoje.

Pra começo de conversa, o uso displicente e indisciplinado que o poeta faz da metalinguagem choca pela irreverência com que desconstrói um procedimento endeusado e adorado pelos poetas de plantão. Como se poesia fosse metalinguagem. Não é. Pode vir a ser. Mas para este devir, muita água suja e muitos baldes vão rolar.

Consideremos “Conselho”, um dos poemas iniciais do livro: “nem sempre um sorriso / significa alegria ou júbilo // todo cuidado é pouco / no que se refere ao risco / do convite que ele oferta // seja prudente / desconfie / a lição é antiga mas / não perde a validade // e trinta e dois dentes / escancarados podem / disfarçar uma mentira / ou um ato desesperado”. Ao final, o toque beckettiano do homem desumanizado e sem sentido. Que revitaliza e recicla a mesmice dos versos anteriores: diálogo com a poesia neomarginal de hoje. O poeta adentra esta poesia para, depois, implodi-la. Eficácia nota dez. Ou seja, aquilo que hoje se leva a sério na poesia mauricinha, o poeta já detona desde a contravenção do título. Não dá moleza pra poesia de autoajuda não.

Vamos ao poema que abre o livro, “Primeiro poema do segundo livro”, já que ele é a senha para se ler bem este poeta: “não se preocupe comigo; / pode até não parecer / mas está tudo bem / isto aqui? não é nada / – estou só juntando / palavras ao acaso // essa falta de jeito é / porque faz um bom tempo / que nem sequer tento // não é que esteja sem saída / mas também não tenho / mais a vida inteira / para me debruçar / sobre a ternura / de todos os fracassos / nesse jogo tão doce e tão perdido / de procurar por uma nesga / um cacareco, que seja, de beleza”. O lado machadiano de Mauricio Duarte trama e trança, como Capitu e Bentinho, um texto de subtextos e intertextos. E, claro, a fonte desta paródia é a ironia fina e fria. Que sabe valer-se da vivacidade coloquial como um “expert” malandro. A segunda estrofe tipifica exemplarmente este apoderar-se da língua diária sem feri-la. E reaviva-lhe a beleza rítmico-semântico-sintática. Coisa de poeta que ama, e preserva, a língua do povo. Como nos ensinou T. S. Eliot.

Mauricio Duarte capta a dor em “A morte da virgem”, mimetizando em palavras as pinceladas de volume e luz da pintura: “da dor pouco sabemos / além do que Caravaggio / nos permite conhecer // além do que ele nos deixa ver / no jogo de pouca luz que nos / conduz como zumbis ao cadáver // espectadores inertes / seremos sempre parte / das sombras”. A diluição do homem, feito espectro de si, e de seus sentimentos, joga luz sobre quão ínfima é a vida diante da representação da arte. O homem é a virgem morta. Homem atual. Homem pós-moderno. Feito de imagens e reproduções. O poeta vai ao cerne da dor. Fratura exposta na tríade das estrofes do poema. Dói.

Dor e cidade são irmãs siamesas. Em “Lendo Pavese” o poeta começa observando: “não há colinas em meus versos / nem em meu horizonte”, e conclui: “o pouco que entendo é deste desterro / que ruge na cidade, de sua gente sem fim / destes sinais de uma nova era / e da solidão alheia ao progresso”. O poeta se espelha no grande escritor italiano, ao tomar vida e arte como matéria de reflexão do universo. Universo convencionalmente chamado de humano.

Balde de água suja possui unidade admirável. Cada poema ela-se com os seguintes e anteriores, na contracorrente das expectativas. Por isso mesmo cativa e prende o leitor. Um livro raro, feito num projeto gráfico pertinente com a materialidade desta poesia. E com forte impacto visual. Que se estende da capa ao miolo da obra. Ponto para Leonardo Mathias. Que soube ler Mauricio Duarte. E vertê-lo para o leitor. Por fim, desde já, aguardamos o “Primeiro poema do terceiro livro”. Tintim de gin, poeta. 
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 23 de dezembro de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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