terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Certa poesia de um brasilianista



por Amador Ribeiro Neto

Charles Perrone é um poeta que só aos poucos vai revelando-se mais poeta. Não sei se por timidez, ou excesso de rigor, o fato é que sua poesia chega-nos em valises parcimoniosas. Mas quando nos é entregue, revela-se de um modo de tão único e peculiar, que mexe com nosso modo usual de ler e ver poesia.

É que sua poesia sabe que sabe. Tal como o fingidor pessoano. Ou o dado mallarmaico. Sabe que faz, mesmo dissimulando que não. Ou sabe que sabe, matando a cobra e mostrando o pau do verbo.

Com esta engenhoca toda, a poesia de Charles Perrone sabe fazer o leitor sentir-se, também, como aquele que sabe. Aquele que conhece. Aquele que flui na fruição da consciência de linguagem aliada ao prazer estético. Enfim, o leitor, sente-se inspirado, diria Valéry.

Esta é uma das virtudes que encontramos nos grandes poetas: ocupar os espaços do poema com linguagem poética de fato. E ainda encantar o leitor com as descobertas, as epifanias e os insights. Características da poesia pra valer.

Somente o poeta que domina o ofício de fazer poesia (poiésis, no grego) é capaz de levar o leitor por labirintos e jardins de revelações inesperadas. Desautomatizadas, como queria Chklóvski. Re-veladoras de um momento singular, como apregoava Heidegger. Criando outro mundo, como dizia Octavio Paz. Fugindo da norma, como observou Jean Cohen. Sendo linguagem fortemente marcada pelo significado, na expressão de Pound. Enfim, tudo que num momento anterior fora prosaico, transmuta-se, no momento seguinte, em poético.

Charles A. Perrone (1951) é um brasilianista que leciona literatura e cultura luso-brasileiras na Universidade da Flórida. Além de poeta é crítico literário, ensaísta e renomado estudioso da música popular brasileira contemporânea. Ele é o autor de uma obra-referência nos estudos da canção e da poesia da canção: Letras e letras da MPB (Rio de Janeiro: Booklink, 2 ed., revisada pelo autor, 2008). A todas estas atividades, some-se a de poeta (quase) bissexto.

Com o lançamento do bilíngue Deliranjo (Florianópolis: Ed. Katarina Kartonera, 2013), Perrone reúne um grande time de tradutores que vertem sua poesia para o português: Régis Bonvicino, Odile Cisneros, Adriano Espíndola, Paulo Henriques Britto – além de si próprio. Este detalhe é da maior importância, já que todos os tradutores têm um estreito convívio com a poesia, quer como tradutores e ensaístas, quer como poetas.

O livro abre-se numa homenagem “inter-americana ao mestre Décio Pignatari, falecido em 2012”. O poema “Liberdade”, de Décio, ganha uma releitura poética em “Imaginação”, na qual os jogos paronomásticos, os anagramas e os palíndromos, em uma diagramação isomórfica, montam um lance de palavras ideológico-poético. O verso “abre as asas sobre nós” condensa o que afirmo. Em tempo: este é o único caso em que o poema-fonte e o poema-derivado não são traduções, nem traduzidos.

“Aplauso absoluto” usa como epígrafe o neologismo “perhappiness”, que nomeia um poema de Leminski para, de imediato, indagar: “a perhapiness da performance?”. Quem conhece a obra ensaística de Perrone sabe que ele aplica o conceito de performance à voz da poesia.

No compasso do poeta citado ele, poeta em ação, lança, ora aqui, ora ali, o brilho de dois neologismos: vigilanciem e ser-meadas. Assim, aplaude-se a poesia, o poeta e se autoaplaude num poema que é homenagem de homenagens, “dança e canto” caetânicos, jogo de lances mallarmaicos. O verso final, bem ao estilo do grande homen-ageado curitibano: “o tempo curto em casa”. Coisas de Leminski. Coisas de Perrone. Herança da poesia concreta, entre outras coisas.

Já o poema “presente de fim de ano” vale-se da linguagem prosaica, de tal modo que poderia ser escrito sob a forma de um bilhete. Todavia o poeta opta pela estrofe de sete versos (também conhecida como sétima ou septilha) e, assim, leva o leitor, sutilmente, aos encantos e sonhos de uma linguagem poética de forte tradição popular para tratar do mundo corriqueiro das festas de fim-de-ano: presentes, promessas, vidências.

Por fim, conclui inesperada, heideggeriano-lacanianamente: “nós queremos a mesma coisa que é”. A Coisa. A busca da Essência. Existirmos, a quantas perguntas se destina? Poesia, teu nome é prédica e predestinação. A velha logopeia poundiana revisitada: poeta-profeta.

O tempo, que já aparecera nos dois poemas citados anteriormente, volta a ser um dos nós górdios em “Itinerário atualizado” – já desde o título um update, um upgrade temporal. Se em “presente de fim-de-ano” o primeiro verso ao pontuar: “então ela também resolveu vir me pedir”, introduz uma narrativa in progress, deixando o leitor, de fato, a ver navios – ou a imaginar e criar situações possíveis/plausíveis – o mesmo recurso, de lançar o leitor em meio a um mundo em torvelinho, ressurge no verso que abre “Itinerário atualizado”: “e agora ser baixado para”. Sem dúvida, a linguagem dos dois poemas não somente acolhe o leitor, como projeta-o como co-autor de ambos os poemas.

Os jogos sonoros dos versos iniciais de “paz interior” apontam para uma expansão do mundo a-lógico: “arreliando e / arrasando a razão”. Ri-se aqui o “ride, ridentes! / Derridederridentes!”, de Khlebnikov, na memorável intradução de “Encantação pelo riso”, feita por Haroldo de Campos. Ou como o próprio Leminski destaca em seu livro sobre a biografia que escreveu sobre Cruz e Sousa pra Coleção Encanto Radical, ao citar o soneto “Acrobata da dor”, chamando a atenção para o verbo “rir” genialmente incrustado no vocábulo tristíssimo, do poema: “Ri coração, tristíssimo palhaço”

Os versos seguintes de “paz interior” remetem ao mundo barrocodélico de Leminski ao mesmo tempo que somam-se ao universo haroldo-joyceano de compor neologismos: “/ seja cartesiano / discartesiano”. Um pôr e retirar, ao gosto barroco; um construir e desconstruir à la Derrida; um conter e expandir à la Deleuze. Enfim, um propor e descompor, sempre lúdicos. A palavra enquanto brincadeira, enquanto “promessa”, para “além da borda / a natural orla / sem limite preciso”, levando o leitor à zona do fronteiriço, da borda, da orla, do território sem limite.

A poesia de Charles A. Perrone espraia-se em versos abundantes ou se guarda na contenção. Em ambos os casos, a contenção com a palavra que sabe, e que se sabe obrigada a uma cumplicidade com o rigor poético e com o leitor de poesia. Eis o que determina o tom e o tônus de Deliranjo.

Lira de um delírio: o de saber e o de saber-se poesia num mundo de acidentes e de asas que se abrem. Céu e inferno de Wall Street. Anjo. Anjo marginal. Charles da canção de Jorge Ben – replicante e replicável de um brasilianista que se sabe estrangeiro. (Em sua própria terra, também?). Por isto mesmo ele canta o canto da palavra, matéria concreta e viva da poesia que vai. Que segue. Que se entrega para lampejos, quereres e pulsões do leitor. Uma poesia do tempo, do homem, da cidade. E, antes de tudo, do saber. Dos saberes. Uma poesia que se sabe. 
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Publicado pelo Correio das Artes, maio/2015, ano 66, nº 3, p. 14-15, suplemento literário do jornal A União, de João Pessoa, em 06 de junho de 2015, na coluna Festas Semióticas.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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