terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Um haicai incomoda muita gente



por Amador Ribeiro Neto

No final dos anos 50 João Gilberto cantava: “fotografei você na minha Rolleiflex / revelou-se a sua enorme ingratidão”, dando início ao movimento Bossa Nova.

João tem sido o responsável por um dos maiores “saltos qualitativos” de nossa música popular. Ele é uma figura tão ímpar que consegue agradar a polos diametralmente opostos da crítica musical, como José Ramos Tinhorão e Augusto de Campos.

O lance de capturar a imagem num flash é um dos tópicos do haicai, a concisa poesia oriental de dezessete sílabas distribuídas em três versos. Como se vê, tudo minimal. E mais: abarcando uma reflexão acerca do mundo, em especial, a partir da natureza. Reflexão que deve surpreender o leitor pelo inusitado, ainda que feita a partir do cotidiano mais banal. Algo assim como expressam os versos de Caetano Veloso: “surpreenderá a todos não por ser exótico/ mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / quando terá sido o óbvio”. Sintetizando a síntese, Caetano surpreende e encanta.

Concisão, economia, rigor, precisão, imagem, ritmo, ideia: esta poesia não está no gibi. Não se contenta com oba-oba. Não faz concessões. Não é à toa que poucos conseguem compreender sua exata economia. O raciocínio e a sensibilidade fervilham entre suas mínimas dezessete sílabas. Um haicai incomoda muita gente. No entanto, para os orientais, é projeto de vida escrever ao menos um haicai durante a vida.

Ao ser transportado para o Ocidente, este tipo especial de poesia encontrou dificuldades. Nossa filosofia alicerça-se na razão e busca reduzir quase tudo a um porquê. E aos múltiplos derramamentos verborrágicos.

Sem o ideograma, sem a escrita pictórica, sem a natural secura da expressão oriental, temos de nos contentar com um produto aproximado do original. Tão aproximado que quaisquer três versos, ou estrofes únicas, passaram a ser chamadas por estas terras tupiniquins de haicai.

Justamente nós que temos um pé bem fincado nas ocas, nos esquecemos de que nossos índios (à semelhança dos povos orientais) não têm o verbo ser. Dispensam todos os predicativos nominativos que fazem os rendimentos dos professores de língua portuguesa. E a desgraça de inúmeros brasileiros. Alunos, ou não.

Nós soubemos herdar dos índios os vários banhos diários. E, entre outros, a indispensável rede, símbolo do lúdico, do desperdício e do excesso. Mas, incentivados pelos religiosos europeus, nos ativemos ao verbo que “É”. Ao verbo que se fez carne e que “É” desde sempre. Definindo-se como “aquele que É”. E ponto.    

Ser ou não ser ficou sendo prato cheio do nosso dia-a-dia. E tão cheio que não nos bastamos com o verbo ser: auxiliamos nossa gula incorporando o verbo estar. Nossa língua, que alguém já disse ser nossa pátria, fez proliferar a verborragia. As explicações tornam-se exaustivas. A linguagem jurídico-empolado-parnasiana senta praça. Restam a poesia, nas artes, e o jornalismo, na comunicação, como respiradouros. Como salva-vidas.

A lei do silêncio vira regra na linguagem poética. João Cabral, autor de Morte e Vida Severina e Outros Poemas em Voz Alta, é produtor de silêncios minerais. João Gilberto, na música; Tomie Ohtake, nas artes plásticas; Gerald Thomas, no teatro; Júlio Bressane, no cinema; etc., também o são.

Exemplificando com o haicai: Millôr Fernandes deixa ver que poesia faz interface com o humor. No livro Hai-kais, poderia ter escrito um ensaio, mas preferiu trocar o verbo “ser” pelo “ponto e vírgula”: “Passeio aflito; / Tantos amigos / Já granito”.

Neste haicai a morte entrelaça ação (eu passeio: verbo) e lugar (o passeio: substantivo) num único vocábulo. Semelhantemente à língua chinesa, a palavra perde a classe gramatical normativa e gera uma gramática própria. É preciso ver e ler o poema na sua mais radical ambiguidade. Aí que é mora a poesia. O resto pode ser derrame cerebral (ou sentimental) de palavras, nunca poesia.

Considere-se, ainda, que o granito da laje tumular passa para o granito da calçada por onde o eu poético passeia. Belo momento de concisão imagético-reflexiva. Esse eu vai sendo, pouco a pouco, tomado pela aflição da saudade/lembrança de “tantos amigos”. Quais amigos? Ora, todos. Os que já se foram e os que caminham no horizonte do possível. Eis aí o alcance da poesia de Millôr: abraçar o amigo particular, o amigo público, a dor universal dos “tantos amigo” idos ou indo. Acalentar o sentimento doído de continuar vivo com “tantos amigos / já granito”. O haicai deu seu recado: um grito.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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