quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Uma poemúsica de Arnaldo Antunes



por Amador Ribeiro Neto

Arnaldo Antunes dedica parte significativa de sua obra impressa em livros e gravada em CDs e DVDs ao público infantil. Sua canção “Dorme” integra o disco Canções de ninar, interpretado por vários cantores, entre os quais Ná Ozetti, Mônica Salmaso, Hélio Ziskind, Suzana Salles, Virgínia Rosa.

Arnaldo Antunes apresenta uma cantiga de ninar, num poema que desloca a anáfora para o final de cada verso, formada por uma só palavra: “dorme”.

Para que a canção enfeitice o seu ouvinte ele alinhava uma série de elementos do cotidiano da vida,e não apenas da vida infantil. Amarra tudo com a constatação de que tudo dorme. Se tudo dorme, está na hora do neném também ninar. Transcrevo o poema: “Para-raio, dorme / Temporal, dorme // Vaga-lume, dorme / Abajur, dorme // Ambulância, dorme / Camburão, dorme // Travesseiro, dorme / Meu amor, dorme // Luiz Gonzaga, dorme / Luz do sol, dorme // Sentinela, dorme / General, dorme // Caravela, dorme // Carnaval, dorme // Candelária, dorme / Candomblé, dorme // Cambalhota, dorme / Bambolê, dorme // Pensamento, dorme / Sensação, dorme // .............., dorme / Amanhã, dorme”.

A letra parece, à primeira vista, um amontoado aleatório de objetos e sensações do dia-a-dia. Tudo parece estar aqui para indicar que tudo dorme e ponto final.

Mas uma leitura mais atenta constatará que os versos são dísticos (ou seja, dispostos dois a dois em cada estrofe) e que, do conflito entre eles nasce uma imagem que os engloba e resume.

Assim, do par para-raio e temporal derivamos chuva; de vaga-lume e abajur = luz; de ambulância e camburão = sirene; de travesseiro e meu amor = sexo; de Luiz Gonzaga e luz do sol = lua (lembremos que o apelido de Luiz Gonzaga era Lua); de sentinela e general = poder; de caravela e carnaval = Brasil; de candelária e candomblé = religião; de cambalhota e bambolê = brincadeira; de pensamento e sensação = totalidade do ser; do termo não enunciado e de amanhã = surpresa.

Claro que esta leitura responde a uma das várias possibilidades que a letra sugere. A ela chegamos através do recurso neobarroco denominado, pelo franco-cubano Severo Sarduy, leitura radial. Este procedimento consiste em descobrir os elos dos significantes, em cadeia, a fim de chegar-se ao significado.

Tal procedimento, em si lúdico, estimula no ouvinte/leitor muitas possibilidades de descoberta da letra. Este exercício, que podemos fazer tanto com adultos, como com crianças, tem o mérito de tomar o receptor como co-autor do objeto analisado. Isto propicia prazer e engajamento. Prazer do achado e engajamento com o texto artístico.

A música de “Dorme” é formada por duas linhas melódicas bem simples. Diria: monocórdica. Todavia, realçada pela presença do timbre masculino (Arnaldo Antunes) e do timbre feminino (Zaba Moreau). Enquanto a voz grave elenca os seres e sensações, a voz feminina sublinha tudo com “dorme”.

Na última estrofe, ao invés do primeiro verso ser cantado, temos apenas instrumentalização. Mas o termo em anáfora – dorme – é enunciado.

Fica o silêncio, como forma de insinuar que nada mais precisa ser dito: a criança dorme e o amanhã também dorme. Ouvem-se apenas os instrumentos em solo, como na introdução: violões, cavaquinho, órgão, bandolim, baixo.

As cordas remetem o ouvinte de música popular brasileira a um mundo de ritmos conhecido: pagode, samba, chorinho. Contudo, aqui a música não é tomada pelo ritmo, mas, uma vez mais, pela distensão e pelo alongamento melódico reforçando a impressão da perda de um objeto. Nenhum objeto precisa mais ser apresentado: agora até mesmo os sentimentos e as sensações também dormem. É o repouso do mundo, do corpo e da mente.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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