terça-feira, 15 de março de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Uma canção para a tolerância



por Harlon Homem de Lacerda

Desde a primeira vez que li o conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras Estórias, fiquei atordoado, em suspenso, anestesiado. Tempos depois, quando fui a Barbacena e tomei conhecimento dos “trens de loucos” que eram levados pra lá, fique mais atordoado ainda. Quando li mais uma vez hoje pra escrever essa perspectiva encontrei uma maneira de racionalizar aquela suspensão primeira. Sorôco e sua canção entoada por todos, por dó, num gesto, num ato de apoio para aquele que acabara de levar a mãe e a filha para o nunca mais, pode ser compreendida como um caminho para a tolerância.

A história toda dos trens de Minas Gerais, que partiam para Barbacena, para experiências manicomiais quase (quase?) nazistas retratam um período da História Brasileira, ou melhor, retratam um mecanismo do pensamento e do comportamento do Brasil. Explico: nesse país há uma tendência histórica e localizada socialmente em separar, extirpar, esconder, tirar de circulação todo aquele que não se enquadra num determinado padrão socioeconômico ditado pela elite – há, no Brasil, uma forma de intolerância velada em discursos, em distorções, em manipulação da realidade. Alguns exemplos bem característicos, além dos trens mineiros, são os campos de concentração do Ceará, na seca de 1915 e as leis de vestimenta e comportamento permitidos no passeio público de Fortaleza; outros dois, muito próximos, são os massacres de Canudos e do Caldeirão da Santa Cruz. Por trás de cada um desses acontecimentos há um discurso de limpeza, de patriotismo, de ordem, de progresso (talvez seja impossível não ligar esses exemplos ao que nós vivemos hoje, na perseguição que corruptos de elite fazem a corruptos que enfrentaram a elite).

Mas é aí que a literatura dá um banho na realidade. Se Sorôco sucumbe à necessidade de deixar que o trem leve sua mãe e sua filha para o nunca mais, ele mesmo entoa a canção que servira como base para determinar a diferença e, por isso, a intolerância. Ele canta. O povo canta. Todos seguem Sorôco até quando a canção tivesse fim. Essa prática de empatia realizada por todos, sem explicação, sem combinação, é a possibilidade da tolerância. É a possibilidade de racionalizar os motivos que levam a segregação e tentar, num outro momento, superar essa segregação.

No Brasil, infelizmente, a segregação continua crescente, continua ignorante, continua mascarada por discursos de limpeza, de patriotismo, de ordem, de progresso. Mas será possível, talvez, um canto uníssono de união, de luta, de superação? Eu, infelizmente, dada a onda fascista que cobre o mundo mais uma vez (de Trump a Aécio, da União Europeia ao Estado Islâmico), não tenho tanta esperança. Mesmo assim, fico parado, calado, distante, como disse Chico Buarque, fico aqui me guardando pra quando este carnaval chegar.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Cabismeditado
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Circuntristeza
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Grande Sertão: veredas’ – Duvida?
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- Perspectivas do Alheio – 01 ano
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- Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Conta quem conta
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma

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