terça-feira, 29 de março de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Sobre coisas levianas e descuidosas



por Harlon Homem de Lacerda

Nhinhinha, da Serra do Mim era uma Menina de lá. O jogo de pronomes que o narrador estabelece nesse conto nos faz refletir sobre a posse e o desejo, sentimentos inalterados do pronome “Eu”, do sujeito, do indivíduo. Uma menina de uns quatro anos de idade, que fazia os pais incompreenderem seus gestos e feitos. Menina santa. Menina.

A narrativa de “A menina de lá” é uma leveza só. Talvez por isso nos carregue para um universo tão destoante do nosso, o universo do querer pouco, do querer coisas levianas e descuidosas. Do viver fácil, simples. A reflexão sobre esse abismo de quereres e estares sempre afim, como escreveu e cantou Caetano, que nos embala num mundo de consumo e angústia, de ansiedade e ganância parece um tanto esquálida, apaga já, mas ela urge. A cada segundo o mundo se torna mais inabitável. Não falo do clima. Falo das pessoas que o habitam – elas estão insuportáveis no limite. Há um sentimento generalizado de vontade de poder e ter que impossibilita os gestos mais puros, mais humanos – no alto sentido de valores perpetuados ao longo da tradição de bondade, tolerância e amor.

Enquanto Ninhinha queria só uma pamonha de goiaba, o pai queria chuva para não perder a produção, para acabar a seca. “Deixa... deixa...” dizia a menina. E quando ela quis chuva, não foi pela seca, foi pra ver o arco-íris, o arco da velha. Foi pra ver beleza, foi pra ver o simples, foi pra ver o sensível, o intangível.

Se há uma boa lição nesse conto das Primeiras Estórias é esta: queiramos coisas levianas e descuidosas. Sejamos mais simples, mais positivos, assertivos. Sejamos humanos. Sejamos da Serra do Mim, a Menina de lá.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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