quarta-feira, 12 de abril de 2017

Alarido



por Amador Ribeiro Neto

Bruno Molinero (São Paulo, 1990) cursou a Escola de Comunicações e Artes da USP. Jornalista. Estudou na Escuela Internacional de Cine y Televisión de Cuba e na Universitat de les Illes Balears, na Espanha. Vencedor do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Finalista do prêmio Nascente, da USP. Representante do Brasil no World Event Young Artist, na Inglaterra. Alarido (São Paulo: Editora Patuá, 2016) é seu livro de estreia.

Sua poesia é feita da mesma matéria temática do jornalismo. Caminhoneiros tomando rebite pra dar conta da carga. Dona de casa mata o marido por puro estresse. Mãe atormentada pelas fantasias do filho abortado. Garoto crucifica um inseto depois de tomá-lo como deus. Medo do motoqueiro que carrega “revólver na bermuda”.

Engenheiro perde família no terremoto do Haiti, emigra para o Brasil e passa fome. Incêndio queima casas e biblioteca – menos uma página do Drummond. Menina do pole dance apresenta queixa inusitada. Delírios de um jovem solitário diante de uma garota no metrô. A garota do BDSM. Garotinha morre e vira boneca das coleguinhas. A inveja da mulher infértil e o castigo aplicado a uma tartaruga. A estranha lição de vida do jovem polaco. Ritual de um velho ante a morte. Universitária se fotografa para as redes sociais entre tiros. Idas e vindas das mandingas. Embaraços de uma anciã carente.

Maravilhamento da filha ante a morte do pai. Estranhas descobertas de um bebedor de uísque. Jovem que faz amor no cemitério.

Manchetes de jornais. Poderiam ser e parar por aí. Mas não. Sua poesia advém da mesma escolha sintática do jornalismo. Versos curtos. Nada de inversões. Predominância quase absoluta de substantivos. Ritmo acelerado de palavra puxa palavra. Comunicação imediata.

Bruno Molinero constrói seus poemas com a matéria concreta do cotidiano. E com a materialidade das palavras. Eles são fruto de uma montagem de versos (às vezes sílabas, às vezes apenas letras) que iconizam o objeto de que tratam. Por isso mesmo, ao lado da secura e objetividade, há a arquitetura de um aporte cinematográfico.

Ler Alarido é adentrar nas tramas e teias do cinema. Ainda que a contracapa do livro enuncie: “Alarido: 1. ruído de vozes, de gritos; falatório, algazarra, gritaria. 2. gritaria de guerra, clamor de combate”. O poeta, ou quem escreve a contracapa, já que não é assinada, parece chamar a atenção para o caráter auditivo e combativo do título. De fato a denúncia é a marca desta poesia, que sabe ser engajada passando ao largo do panfletário, do didático e da pasmaceira. Coisa rara. Coisa louvável. Mas não é só isso.

Todo bom poema é uma somatória de um bom tema com um bom arranjo da linguagem. Muitos se equivocam e focam no tema desprezando o tratamento dele. Outros incorrem no erro inverso: aprimoram formas e menosprezam o tema.

Em Alarido (assim, no singular, para ecoar mais forte) temos espessa marca da materialidade da poesia. O signo é tomado no âmago de suas camadas de significado e significante. Se a palavra visa a ser música na poesia – e música que se corporifica em significados –, aqui temos um grande livro de poesia. Temos uma estreia que merece toda atenção do leitor da melhor poesia.

Na resenha da antologia É agora como nunca (organizada pela Adriana Calcanhotto), comentando um poema de Bruno Molinero, anotei: “a narrativa do jornalismo policial convertida em possante vivacidade poética. Talvez seja nosso Rubem Fonseca da poesia”. Retomo e reafirmo o que dissera. Se nosso grande prosador vem, a cada livro, renovando a narrativa contemporânea com uma marca singularíssima (que chega a confundir críticos e leitores afoitos), o poeta trilha o mesmo caminho. Parece fácil o que ele consegue. Mas foi ele quem conseguiu esta forma na poesia contemporânea. Bandeira ensaiou algo próximo no “Poema tirado de uma notícia de jornal”. Mas é outra coisa. Outro contexto. Outro momento. Bruno toma o noticiário e o recicla com forma e/ou novas intervenções textuais. E aí mora o alumbramento de sua poesia.

Vejamos. “lúcia, 51, canhota” diz:
a morte do meu pai
é minha lembrança mais bonita

estávamos nós quatro na cozinha
eu
mamãe
vó marta
e meu irmão
quando veio a bomba

– papai morreu

vestida de rosa e bolinhas amarelas até o tornozelo
vovó se levantou
subiu no banquinho em frente à pia
esticou-se para alcançar o pó de café guardado no
armário
e disse lentamente
enquanto colocava a água para esquentar

– calma, lucinha. nós já vamos vê-lo

entramos no landau azul
chumbo
e logo imaginei meu pai da mesma cor do carro
algodãozinho no nariz
terno preto
gravata fina

mas quando chegamos ao porão
em que meu velho tinha dormido para sempre
quase caí para trás

meu pai estava enforcado
mas não era um morto qualquer
caído
frouxo
flácido

ele morreu enforcado
em um quarto colorido
cheio de brinquedos
vestido de palhaço
e com milhões de bexigas amarradas no pé esquerdo
tantas
mas tantas
um exército de bolinhas cintilantes
que puxava o corpanzil de 120 quilos pelo tornozelo
em direção ao céu
e só não o levava para a lua
porque a corda amarrada no pescoço
insistia em fazê-lo flutuar de ponta cabeça

meu pai morreu enforcado
espelhado
ao contrário
invertido

ele sempre me surpreendia
aquele bandido
até na morte tinha que fazer palhaçada

deitei no carpete cinza
olhei os cabelos feito morcegos ao meio-dia
e adormeci com o cheiro forte de café que inundava o ar

Como desconhecer a força poética deste poema? Bruno vale-se do coloquial, de recortes da realidade crua e os investe de uma linguagem admiravelmente isomórfica. Quer seja: a cada sequência do poema, marcada pela divisão estrófica, o eu lírico (= lúcia, 51 anos) faz-nos companhia no percurso para o encontro da morte. E na construção do vazio da vida entre cores e brinquedos.

Em “ângela, 51, não tem ovos”, a solidão se compraz da crueldade:
nunca antes tinha tomado sopa de tartaruga
até que meti a gertrudes na panela

ela mereceu
:
decidiu colocar um ovo bem na minha frente
acredita?

vinte anos juntas,
desde que a bicha parecia um enfeite de banheiro,
e nunca tinha feito nada parecido

aí… cloc

botou a casca
melecada
ao lado do meu pé

justo ela
comprada para nos fazer companhia
quando descobri que não tenho óvulos próprios

tomei o caldo frio
ainda ouvindo-a borbulhar dentro do casco

Imagens desconcertantes vazam todo o poema. O primeiro verso começa com requintes de uma refeição sofisticada. E o último fecha o poema com requintes da crueldade anunciada. A invocação do leitor como cúmplice (“acredita?”), a incorporação da onomatopeia como economia verbal (“aí, cloc”) e o desamparo ante a traição da tartaruga, depois de vinte anos de cumplicidade, desorientam o eu lírico (= ângela, 51 anos) ao mesmo tempo em que desnorteiam o leitor. Esta quebra da norma, inicialmente sugerida, reverte a expectativa que o poema enunciava, e instala uma nova perspectiva: e aí reside a poesia.

A banalização da violência está em “marcela, 43, casada”:
matei, sim senhor
porque quis
não, até que era bonzinho
na gaveta da cozinha. uma daquelas grandes, sabe?
isso, ele estava no sofá
de costas
não, não me viu
dei dois passos e a lâmina escorregou para a cabeça dele
não tirei porque mancharia ainda mais o tapete
ora, se sabe, por que pergunta?
desculpe. sim, o corpo ficou lá
depois saí
mansão. era muito rico
não. deixou tudo para as meninas
eu sabia, sim senhor
porque quis, já disse
cansei de subir em pau de sebo. deslizar fácil não tem graça
sim. mas vou ficar muito tempo?
é que deixei a panela no fogo

A poesia, sabemos, é um texto difícil. Esta dificuldade, todavia, não reside nos malabarismos da linguagem. A bem da verdade, malabarismo, em poesia, é tiro no próprio pé. É difícil fazer um poema hermético de qualidade. Mas é também difícil fazer um poema simples, que prime pelo rigor sem cair na mesmice.

Em Bruno Molinero a palavra colhida do jornalismo é reciclada por imagens e montagens estruturais que desconstroem a percepção viciada do leitor e inauguram um novo momento. Pode ser o caso do leitor de jornais, bem como o de literatura. Bruno Molinero desinstala a segurança do leitor que, precipitadamente, acha que sabe qual é a do poema.

Não sabe. Não sabemos. Eis mais um mérito deste poeta. Cada poema está no limite do prosaico. E essa é uma grande qualidade. O poético limítrofe. Isso não é fácil. Isso fascina em Alarido.

A poesia narrativa de Bruno Molinero é neo-épica, sem deixar de ser lírica. Seu estilo épico-poético-jornalístico é um alento em tempos de tanta literatura diluída e/ou vazia. Ele estreia com marca própria. Que venha o novo livro.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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