quinta-feira, 4 de maio de 2017

Poema das quatro palavras



por Amador Ribeiro Neto

Airton Cattani (Garibaldi-RS, 1955) é poeta, contista, professor da UFRGS, artista gráfico e arquiteto. É Mestre em Educação e Doutor em Informática na Educação, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem livros publicados em sua área profissional. Em ficção é autor de 40 microcontos experimentais (Prêmio Açorianos de Literatura 2011 e segundo lugar no Jabuti 2012, ambos na categoria projeto gráfico). Poema das quatro palavras (Porto Alegre: Marcavisual, 2015) é sua publicação mais recente e obteve o primeiro lugar no Prêmio Açorianos de Literatura, categoria Projeto gráfico.

A escrita poética em labirinto, prática barroca, rendeu novas dimensões para a palavra poética. Desde então um poema passa a ser lido em várias direções espaciais, captando diferentes momentos do texto, tanto rítmica quanto semântica, visual e sintaticamente. Ana Hatherly, em seu livro A experiência do prodígio; bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII (Lisboa: Imprensa Nacional, 1983), nos traz a teoria e sua aplicabilidade a poemas barrocos, sugerindo sua pertinência aos estudos da poesia experimental contemporânea.

Muito se fala das inúmeras visadas de leitura que Un coupe de dés (traduzido como Um lance de dados), do Mallarmé, trouxe para a poesia. Em especial, o espaçamento da palavra na folha de papel, o arranjo tipográfico variado, o uso predominante da frase nominal, entre outros.

Os poetas dadaístas, ao apregoarem a liberdade total das palavras, indo da desordem semântica à sintática, com o elogio gratuito do som e do ruído, trouxeram uma ética radicalmente anárquica. Da notícia de jornal retalhada, embaralhada e sorteada, ao poema daí resultante, que “é a cara de seu dono”, à desconstrução de valores burgueses e capitalistas, esta poesia atingiu, como um míssil, a arte tradicional.

A Poesia Concreta, ao decretar o fim do verso tradicional e incorporar as experiências de Mallarmé a Mondrian, passando por João Cabral e Le Corbusieu, libertou o poema das normas estabelecidas e o lançou no turbilhão de signos. Significados e significantes, tomados na sua materialidade, alcançaram, em cheio, a tradicional poesia brasileira. Aquela que adorava “averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo”. Assim, ainda que na marra, oxigenou a poesia, exportou-a e abriu vias para o advento da poesia digital.

Poema das quatro palavras, de Airton Cattani, é uma retomada de todo este processo histórico de conquistas da poesia. Seu livro é impresso sobre papel vegetal e possui capa em papel cartão. A primeira edição, de 123 exemplares, todos numerados e assinados pelo poeta, é um primor gráfico e poético. Quanto ao diferencial gráfico, de fato, um cuidado extremado, mas nada de surpreendente. Temos visto muita coisa boa nesta área.

A novidade está no fato de que a montagem do miolo é feita aleatoriamente. Ou seja, não há um exemplar igual a outro. Aí, sim, mora um diferencial provocativo. O leitor, que inicialmente lê segundo a encadernação que lhe coube, a seguir pode desencaderná-lo e montar seu livro-objeto, como bem queira. E ele passará a ter “a cara de seu dono”.

“À sua maneira, este livro é muitos livros”, anota Cortázar sobre seu Rayuela (publicado no Brasil como O jogo da amarelinha). Pois bem, a mesma advertência presta-se ao livro de Cattani. Com uma especificidade: como as páginas são em papel manteiga, o leitor lê e antelê a(s) página(s) seguinte(s), o tempo todo. Mesmo não querendo, sua leitura inicial já é, multidirecional: o que lê e o que antevê/lê.

Por isso mesmo, o leitor rola os dados, com o poeta, na roleta da poesia. Esse ludismo configura um painel caleidoscópico de centenas de leituras. Consequência: prazer desdobrado em cada dobra desta obra de inúmeras possibilidades.

Atentemos para o título da obra. Ele é composto por quatro palavras. E o conteúdo compõe-se, de outras quatro palavras. Estas quatro palavras (as do miolo do livro) entregam-se como anagramas e/ou palíndromos em jogos especulares. O tabuleiro avança em direções indiferenciadas. As imagens não têm limite.

Poema das quatro palavras remete-nos, por exemplo, a Gregório de Matos, cujo soneto, “Achando-se um braço perdido do menino deus”, inicia-se assim:
O todo sem a parte, não é todo;
a parte sem o todo não é parte;
mas se a parte o faz todo, sendo parte,
não se diga que é parte, sendo todo.

O jogo que o poeta barroco estabelece, com os termos “todo” e “parte”, assume a desestruturação física da imagem do menino deus para, em seguida, recompô-la via linguagem. Perda e reparação são pares antitéticos caros ao barroco, dos quais o poeta se apropria para arquitetar o ludismo de seu poema.

Há uma observação de Antonio Candido segundo a qual a fase inicial da análise (o comentário) não deixa de lado a manifestação do gosto, a que ele denomina “a penetração simpática do poema”.

A seguir, observa que qualquer poema é passível de ser comentado. No entanto, só se interpretam os poemas que nos dizem algo. Aqueles que nos mobilizam. E é isso que o livro de Cattani nos oferece: de imediato, forte empatia. Ou nas palavras de Borges: “Tenho plena convicção de que sentimos a beleza de um poema antes mesmo de começarmos a pensar num sentido”. É o que sentimos ao manipularmos o livro de Cattani. Uma beleza que se entrega no ato. E que ganha intensidade de significado a cada novo momento de leitura, de atribuição de sentido.

Retomando Antonio Candido, à luz do poema de Gregório, podemos pensar que o comentário corresponde ao “momento parte”, e a interpretação, ao “momento todo”.

Para o autor de Formação da literatura brasileira, “todo poema é basicamente uma estrutura sonora”. Vem a dúvida: o poema de Cattani, não é antes de tudo imagem visual? À primeira vista, sim. Mas depois, ao lê-lo ouvindo-lhe sua dicção e atentando para a musicalidade das palavras em movimento no espaço da página em branco e transparente (vimos que o papel é manteiga), damo-nos conta de que estamos diante de imensa massa de imagem sonora.

Na dança das palavras dentro da página, e no interregno entre uma página e outra(s), a música se presenta e coreografa os passos da poesia. Ao se presentar, ela não apenas apresenta, mas, concomitantemente, torna-se presente. Presente = o tempo e a dádiva.

O livro Poema das quatro palavras, pela própria feitura, não permite que se reproduza aqui nenhuma parte sem ferir sua unidade. Fica o convite ao leitor para que se aventure no alumbramento de um livro que é, de fato, a cada leitura, a cada montagem, uma nova sequência de revelações. Um livro para ver, ler, ouvir. E tudo de novo, outras vezes. Sem fim. 
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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