domingo, 3 de setembro de 2017

‘Enfim, sai o disco de Abidoral’: matéria no Diário do Nordeste, em agosto de 1987, sobre o álbum ‘Avallon’



Compartilhamos texto publicado no jornal Diário do Nordeste do dia 27 de agosto de 1987. A matéria, assinada por Carlos Raphael, baseava-se em depoimentos de Luiz Carlos Salatiel e Abidoral Jamacaru sobre o Avallon, disco de estreia de Abidoral, que seria lançado no Crato no dia 30 de agosto de 1987.

Leia a matéria na íntegra:
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Diário do Nordeste, 27 de agosto de 2017
Enfim, sai o disco de Abidoral

Primeiro LP do cantor e compositor cratense Abidoral Jamacaru. Gravado nos Studios Vice-Versa (São Paulo), entre outubro e dezembro de 1986; Técnico de gravação: Nico; Técnicos de mixagem: Paulinho Chagas, Ary Rogério e Nico; Corte: Juca; Capa: Romildo Alves; Encarte: Edelson Diniz; Fotografia LC Salatiel; Assistência de Produção: Carlos Raphael (Crato) e Marcos Vinícius Leonel (São Paulo); Co-produção: Maria Socorro Salatiel; Projeto, direção de produção e executiva: Luiz Carlos Salatiel; Músicos convidados: Adriana, Audízio Tapioca, Bá Freire, Betão, Cacá Malaquias, Dementier, Gil, Grupo Bendegó, Izânio, Luís Brasil, Manel DiJardim, Proveta, Paulinho, Paulinho Chagas, Rubão, Suzana Belo, Teningson, Tiago Araripe e Xico Carlos. Selo OCA.

* Os depoimentos de Abidoral Jamacaru e Luiz Carlos Salatiel foram dados no pré-lançamento do disco Avallon, no programa Terra Brasilis, da Rádio Cidade do Crato.

Necessárias foram quase duas décadas para que o público pudesse ouvir o registro, em disco, de um dos trabalhos mais coerentes da Música Popular Brasileira (MPB) - a música do compositor cratense Abidoral Jamacaru. O LP, gravado entre outubro e dezembro de 1986, em São Paulo, já é antológico pela sua própria atuação. Não poderia ser diferente. É o que se percebe ao ouvir Abidoral falar da obra com ares de contente.

Há tempos não tão remotos, Abidoral descartava a possibilidade da gravação de um disco. Era uma ideia engavetada. Não pelas dificuldades, mas pelo preço ideológico que se paga para ser editado pelas gravadoras comerciais. E para que as “nativas” canções de Abidoral sofressem um tratamento tecnológico e serem transportadas para os sulcos do vinil, foi preciso a interferência do também compositor Luiz Carlos Salatiel, que se disfarçou de produtor.

“Produzir este disco era um projeto de longas datas”, afirma Salatiel. “Era pública a resignação de Abidoral quanto ao lançamento de discos, mas pesou um convívio que temos de mais de uma década. É um processo artístico de interferência, de dar certo e estar certo para a gente. E foi uma questão de tempo que tivemos para amadurecer o projeto”, explica o produtor.

Luiz Carlos Salatiel continua dizendo que na cidade os artistas são muito bem tratados quando animam e divertem, “mas durante o dia são chamados de vagabundos e drogados”. “Daí, continua a importância de nós mesmos lutarmos pelas nossas coisas. Então, dentro desse projeto, existe o empenho de escrevermos a nossa crônica. Agora, esse disco não é o ‘disco de Abidoral’, num sentido personalístico. É um disco nosso, com ideias de toda marginália da cidade”. Concordando, observa Abidoral: “a gente gravou com músicos de nível excelente, que liberaram toda a criatividade que tinham, e o disco saiu bem à vontade, como combinamos, uma espécie de cooperação de ideias que fluiu dessa forma”.

Baião-de-todos
É controvertido saber que Abidoral representa toda a iconolatria necessária ao bairrismo da cidade somada ao seu provincianismo mitológico tipo “na-minha-terra-tem-um-grande-cantor”. E mais controvérsia é saber que Abidoral, depois de ser aclamado como uma revelação, ao vencer vários festivais da canção regional nos anos 70, ser praticamente banido da cidade por incomodar demais.

Dez anos de exílio voluntários na Cidade Maravilhosa foram suficientes para dimensionar ainda mais a personalidade, também controvertida, deste autêntico representante da geração que batalha por um lugar ao sol, sem o falso requinte da vida meramente artística.

Nesse ínterim, Abidoral foi motivo de noticiário. Não porque gravou um disco e estourou no rádio, mas justamente pelo oposto, tendo rejeitado inúmeras propostas de grandes gravadoras em nome de sua música, cristalina e serrana. Eis porque esse disco não tem anacronismo nas suas oito faixas. Abidoral teve a dignidade de manter viva até agora uma expressão artística que há muito é alvo do inescrúpulo da mídia. “o problema atinge o artista em geral, enfatiza Abidoral, principalmente quando você se propõe a fazer um trabalho fora dos padrões estritamente comerciais”.

O lacre de controle de qualidade e idoneidade ideológica de Avallon está no aroma acentuado do pequi, que pode ser sentido por quem respira pela alma. Um “cast” quase 100 por cento de músicas caririenses invoca os ancestrais Kariris e o clima de magia corre solto. Essa aura sela o LP em definitivo, sendo o ingrediente básico desse “baião-de-todos”. Salatiel explica melhor: “é aquele negócio do sentimento. Você pode comprar uma quadro e jogá-lo na parede para ornamentar sua casa, mas a sensibilidade só passa quando você tem uma sensibilidade artística. Não adianta comprar um disco, jogar na prateleira e dizer ‘pô, eu tenho um disco do Abidoral’. O negócio é ouvir e tirar lições dali”.

Jardins abandonados
E quantas lições têm ali! A primeira está na produção autossuficiente, até de certo modo cara-de-pau, por ter sido feita no meio de uma crise da indústria fonográfica e tudo mais. Por ser 100% autoproduzido, Avallon tem um caminho próprio a percorrer. E fica difícil prever resenhas da crítica oficial (pelo menos, elogiosas). E fica também impossível a cena de uma família do melhor estilo cratense em volta de uma vitrola acompanhando sorridente os versos cáusticos de Geraldo Urano (em duas faixas - “Cuba” e “Deixa Estar”).

Mas não tirem conclusões apressadas: na mesma medida que Avallon não é um postal do Grangeiro, com seus belos jardins e piscinas, também não é um panfleto cru da podridão em que estamos metidos. E da mesma maneira que Abidoral é o orgulho (mesmo que ferido) formal da cidade, ele é também uma unha nas mais recônditas feridas. Numa cidade que já foi cantada pela sua exposição agropecuária, pela sua efervescente vida cultural, pelo seu passado de heróis e revoluções e pela “subida do Lameiro”, onde se toma “um trago de aguardente”, Abidoral redimensiona o valor do torrão cantando uma outra cidade, tão cheia de  contradições que é possível ouvir da inteligência pública um plano de demolir o Parque Municipal para a construção de um hotel.

E nisso há uma razão histórica para entendermos Avallon como uma raridade arqueológica em que o texto-fábula presente no disco define: “...Dos doze pares provindos de França, sete druidas bretões eram e cavalgavam a enorme baleia dourada e desposaram sete índias das tribos deste vale do Cariri e festejaram por sete luas seguidas: cantaram e dançaram e banharam-se nas fontes e provaram da bebida do fermento da mandioca e roeram caroços do pequi e saborearam o doce do fruto do buriti e trocaram mágicas e fumaram do mesmo cachimbo com o pajé. Prosseguiram viagem pela trilha de Sumé, a oeste, rumo ao santuário inca de Machu Picchu onde...” (Manuscrito em papel-seda, datado de MCMLXXXVI d.C., encontrado nos jardins abandonados de um parque em Crato-Cósmica, distrito de Avallon).
Carlos Raphael

Agradecimentos especiais a Luiz Carlos Salatiel.
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Outras postagens no blog O Berro com Abidoral Jamacaru:
- 30 anos do lançamento do LP de estreia de Abidoral Jamacaru; e lançamento do teaser de ‘Menestrel de Avallon’
- ‘Mais tarde, mais forte’, composição de Abidoral Jamacaru
- ‘Discurso’, de Abidoral Jamacaru
- 'O Peixe', poema de Patativa do Assaré musicado por Abidoral Jamacaru
- Entrevista com Abidoral Jamacaru (edição 30 d'O Berro, ano 2000)

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