quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

O blefe e o breque: Moreira da Silva



por Amador Ribeiro Neto

O ano de 1902 é arretado pra música popular brasileira. Nasce muita gente de peso. Gente que compõe, interpreta, escreve, musica e arranja de um modo muito especial. Gente como Moreira da Silva, o malandrésimo Kid Morengueira.

E gente como Clementina de Jesus, Carlos Cachaça, Alcebíades Barcelos, Alberto Ribeiro e Armando Marçal. Parece que o universo estava mesmo querendo ouvir música popular de alta qualidade. Daí, lotou o berçário com músicos-bebês. Sorte de todos nós.

Este pessoal veio se juntar a outros nomes. Deu origem a uma das mais férteis fases de nossa música popular. A “Época de Ouro”. Nossa música se profissionaliza comercial e esteticamente. Surgem novos padrões de fazer canção. Período: 1929 a 1945.

Com o advento do rádio e do cinema falado a música popular encontra novos meios de difusão. O público amplia. O mercado cresce. O padrão de qualidade continua em alta. Afinal, estão compondo, tocando e cantando neste período gente como Noel Rosa, Ari Barroso, Lamartine Babo, João de Barro, Assis Valente, Vadico, Orestes Barbosa, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Carmen Miranda, Mário Reis, Almirante, Carlos Galhardo, Marília Batista. Entre outros.

A MPB da “época de ouro” cria um padrão de qualidade. Que permanece como paradigma da boa música. Felizmente.

É aí que desponta aquele samba que de repente dá uma paradinha. E o cantor começa a falar. Falar o quê? Quase sempre malandragens. Espertezas. Sapequices. Coisas marotas. Macunaímicas. Picarescas. Tanto no tema como na forma de contar. Foi certamente pra elogiar esta malandragem que Noel escreveu: “tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia / é brasileiro / já passou de português”.

O malandro colou ao jeito brasileiro de ser um modo brasileiro de falar.

A malandragem tem sido a dominante em nossa cultura. E não somente na cultura popular. Antonio Candido sacou bem isto. Leu, sob esta perspectiva, o romance Memórias de um sargento de milícias. Destacou a dialética da malandragem. Belo ensaio. Recorte modelar da cultura brasileira.

Moreira da Silva vivenciou a malandragem. Elegeu-a como performance artística.

Ele diz que foi o criador do samba com ginga marota, conhecido como samba de breque. Blefe do malandro. Mais um, dentre outros tantos. Blefe com humor. Malandro que é malandro segura a onda no riso. Ainda que sarcástico.

Mas nos lembre o grande estudioso de MPB, José Ramos Tinhorão que, já em 1929, Sinhô compôs “Cansei”. Este samba forçava o intérprete a criar uma pausa. Era o início do processo. Mais tarde em 1931 a dupla Ismael Silva e Nílton Bastos tornou obrigatório um breque após a segunda parte dos sambas que compunham. Estava dado o passo definitivo do que viria a ser o samba de breque.

Moreira da Silva radicalizou a parada melódica. Preencheu o espaço musical da pausa com falas coloquiais. Fez isto em 1936 com “Jogo proibido” de Tancredo Silva. O jeito agradou. Virou estilo. A partir de então o ritmo sincopado, com paradas súbitas para comentários, geralmente bem humorados, passa a ser conhecido como de samba de breque. Moreira não é seu inventor. Mas é, sem dúvida alguma, seu maior intérprete. E divulgador.

Mas antes deste bafafá Moreira da Silva havia gravado “Arrasta a sandália”, de Aurélio Gomes e Oswaldo Vasques. Samba que hoje é um clássico. Corria o ano de 1933. Época de carnaval. A melodia envolvente e a letra bem elaborada caíram como uma luva para o sucesso. O refrão era simples. Fácil. Pegou logo: “Arrasta a sandália aí, morena / Arrasta a sandália aí, morena”. Nada mais. Nada mais que um verso duplicado. E a sedução do ritmo. Da poesia. Da canção. Definitivamente fica confirmado: há mais mistérios entre a letra e a música do que sonham os estudiosos, os críticos, os cancionistas e os palpiteiros.

Mas foi em 1940, com “Acertei no milhar”, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, que Kid Morengueira leva o samba de breque ao sucesso. A música conta a história de um sujeito que acerta na loteria e, a partir daí, faz planos que vão dos habituais aos mirabolantes. Ao mesmo tempo. Sonha em saldar a conta do armazém. Fantasia comprar-se o título de barão. A alegria dura pouco: a mulher o desperta para ir pro trabalho. Arranca-lhe do sono.

A letra bem humorada é estruturada sobre ritmo cadenciado. Imagens da euforia e decepção, realidade e sonho, acerto e erro, noite e dia. Juntas. Unas. Como se não bastasse, Kid Morengueira ainda improvisa tiradas sobre as utopias do malandro. Cena certeira do cotidiano brasileiro. O jeito é rir. Curtir a canção.

Fome. Jogo do bicho. Conto do vigário. Perseguição policial. Futebol. Gafieira. High-society. Morro. Etc. Temas deste intérprete. Morengueira não somente aproximou a fala da palavra cantada: assegurou espaço pra fala dentro da canção. Com a manha do malandro talentoso.

Toda a MPB é grata a Moreira da Silva. 
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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