quinta-feira, 10 de março de 2016

A arte e a máquina



por Amador Ribeiro Neto

O crítico russo Iúri Lótman observa que “a cultura tem por vocação analisar e dissipar os temores”. O temor de cientificização e tecnização da cultura é ideia antiga. Máquinas inumanas, seres autômatos, automatização da vida, encerram uma metáfora: a perda do controle do homem sobre si mesmo e sobre o mundo.

A desinformação cultural pode levar o homem comum a ter medo das transformações técnicas e científicas de seu tempo. Mas para o produtor de artes e de linguagens funcionais não há desculpas. Ele tem o dever de questionar/provocar o tempo e o espaço enquanto direções da vida cultural contemporânea.

Parece fácil, mas entender o próprio tempo é o desafio que a maior parte dos artistas e dos críticos de arte não consegue encarar de frente. Acomodados em modelos estabelecidos os conservadores vivem em um mundo anacrônico. Pior: muitas vezes impedem que a vida cultural prossiga com sua narrativa feita de pausas, retrocessos e saltos qualitativos.

Para a teoria da comunicação, nivelamento opõe-se à interação crítico-criativa. Quando há nivelamento, há a aproximação dos semelhantes e dos idênticos. Sem conflitos. Ou seja, sem operar inovações. Impera a redundância, a estandartização, a mesmice.

Isso pode ser útil para a comunicação mais imediata, como uma informação objetiva. Mas não vale para a arte. O campo da arte é o da busca das linguagens. Quanto mais uma linguagem se torna singular, diferente, nova, tanto melhor para todas as outras linguagens. Por isto mesmo o homem de jornal não é, a priori, um homem das artes. O jornalista é um profissional preocupado com a eficácia imediata da comunicação. Seu trabalho tem como alvo o público amplo, geral e irrestrito, e como fim, a comunicação direta.

As manchetes jornalísticas não nos desmentem. Mas pode-se objetar que elas são lidas por mais de 100% dos leitores de jornal. Sim, é fato. Mas elas não funcionam apenas como atrativo sedutor: constroem paradigmas de texto e de pensamentos que se pautam pela funcionalidade imediata da linguagem.

A linguagem artística relaciona-se com o tempo numa outra clave: instiga a reflexão inovadora através de um objeto que não se entrega. Nem à primeira vista e nem em tempo algum. À primeira vista ele seduz, e depois revela-se apenas parcialmente, de tempos em tempos, conforme amplia-se o repertório de seu receptor. Esta é uma das razões pela  qual a obra de arte, sendo transtemporal, permanece instigante e atual.

Enfim, cada linguagem tem sua especificidade e seu raio de alcance. O diabo é que este modo da linguagem acaba moldando o pensamento do produtor de sua linguagem. Resultado: há artistas aplicados na prolixidade e jornalistas alimentando-se do imediatamente descartável. Inevitavelmente formam-se dois grandes grupos de pensamento: um alicerçado na verticalidade (o dos artistas) e outro flutuando na superfície (o dos comunicólogos).

Sim: em toda regra há exceção. Mas deixemos o óbvio de lado.

Outra dificuldade no contato com a máquina reside na resistência que lhe impingimos. É que o papel que atribuímos às máquinas está influenciado, até inconscientemente, pela imagem das máquinas conhecidas. “A concepção mecânica da máquina, que remonta à cultura  do século XVII, permanece na consciência do homem civilizado dos nossos dias, travando o desenvolvimento das técnicas e a evolução geral da cultura”, pontua Lótman.

Para o crítico russo, a influência da técnica sobre a arte não apresenta interesse, enquanto que o impacto da  arte sobre a técnica,  este sim, é  que conta. A  obra de arte é o ponto máximo de sofisticação de tudo aquilo que o homem criou. E isto não é metafórico nem exercício narcísico de um ensaísta sobre o seu objeto de estudos. A arte, através de sua  linguagem sempre inovadora e desafiadora das estruturas pré-estabelecidas de todos os stabilishments. Reflete  o ponto a que o homem chegou no presente. Mas como esta apreensão não se rende às apreensões e raciocínios imediatistas. O trabalho da arte, via de  regra, acaba sendo percebido tempos e tempos depois. O Barroco só foi percebido como arte nada menos que três séculos depois de seu aparecimento. E até hoje vivemos lendo/relendo o Barroco. Um dos mais belos estudos sobre o barroco encontramos em Giles Deleuze, filósofo francês contemporâneo.

Os progressos do intelecto artificial ainda engatinham. Não é novidade. Interessante é a razão deste patinamento. Para Lótman, empregamos “funções intelectuais relativamente primitivas com as quais se espera construir um todo pensante, como se constrói uma casa de tijolos”. Ora, o conceito de atividade intelectual repousa, muitas vezes, na certeza  de que o modo de pensar racional e lógico do homem é a medida e o modelo do universo. Esta é uma lógica aristotélica. Vivemos num mundo semiótico.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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