terça-feira, 23 de maio de 2017

A arquitetura das constelações



por Amador Ribeiro Neto

Mauricio Duarte (São Paulo, 1981) é jornalista e poeta. Estreou em 2007 com Rumor nenhum. O segundo livro, Balde de água suja (2015), tivemos a oportunidade de comentar aqui no Augusta Poesia. Sua mais recente obra é A arquitetura das constelações (São Paulo: Editora Patuá, no prelo). E, coisa boa, mantém o vigor dos livros anteriores.

Para Maurício Duarte poesia não é manha nem frescura. É frescor da concreção de ideias. Pois: estamos diante de um livro que foi pensado estruturalmente. Da primeira à última parte. São quatro blocos sólidos, radiantes e radioativos, que se movimentam em torno do próprio eixo e dão origem à figura do círculo, unidade perfeita que enlaça o volume.

Unidade matemática.

Unidade poemática.

Unidade que evita a dimensão estratosférica, fundindo poema e asfalto das ruas. Ainda que mirando as constelações estelares.

Nada há de vácuo neste projeto solidamente edificado. O buraco negro da folha, do coração, da mente e do espaço sideral ata os vãos das palavras salteadas ora em prosa, ora em prosa porosa. Sempre: cristadas sob o amparo da grande poesia.

Logo na primeira página, a pretensa definição científica de “imaginação humana” rarefaz-se em desfecho multidimensional: A imaginação humana é uma arquitetura de constelações. Este será o mote. Esta, a estratégia desta poesia: focar no alvo, acertar nele e no seu brilho.

No início da primeira parte, o poeta dispara: imaginação humana: / arquitetura das constelações. E, ao final dela:
a expansão do cosmos
em direção ao infinito

o insondável assombro
diante dos gases estelares

o rastro luminoso
do último meteoro

a música incessante
das esferas celestes

o alarido da dúvida rolando
na aridez do universo

a imaginação humana como
arquitetura das constelações

Ao fazer uso de variações em torno do mesmo tema, esta poesia busca a música do cosmos – uma música anticonsoante. Uma música de rimas toantes. Despojada. Socada a palo seco. Por isso mesmo, o parentesco cabralino se dá na negação óbvia do texto de Cabral. E entrega-se na penetração do cerne do seu sol metálico, de suas mesmas vinte palavras. Aí a linguagem do poeta vai mais longe e recicla o férreo sentimento drummondiano. Entre estrelas e metais ela impera,  ácida e sublime, na cidade, nos sentidos.

A segunda parte inicia-se espelhada na primeira: a prosa porosa, prosa poética, poesia em linhas ao invés de versos. Já as partes três e quatro reverberam a poesia em estado bruto. Brutalmente talhada na crueza das palavras. Se há um sentimento neste livro é o de posse de um eu em fraturas. Um eu retalhado pelos acidentes da vida – aqui ou no exterior. Sempre: a fratura exposta de um enigma. Há algo nesta poesia que foge. O leitor se atém à sua beleza implícita – sedução pelo dito que não se diz.
A linda moça solitária do café. Ou a linda moça que almoça sozinha no restaurante tem um olhar melancólico. Uma luz mortiça incide sobre ela. Uma pintura de Hopper. Nós, figuras oprimidas pela beleza, sempre partimos do pressuposto de que essas mulheres lindas estão solitárias. Não há nenhuma evidência disso, a não ser nosso próprio desejo mais ou menos oculto de que elas sejam solitárias. Porque não suportamos o pouco que nos é lícito desvendar. A música das esferas é negada aos nossos sentidos. Resta-nos somente esse desejar o mal disfarçado de banalidade. E assim revidar sua insídia.

Todavia, não nos iludamos pensando que estamos diante de um texto hermético. Ao contrário: esta poesia deslinda, desenreda e propala a significação do sentir mais absoluto: aquele do ouvido apurado que ouve o próprio corpo:
a linguagem é sempre
insuficiente para represar
o caudaloso sangue
que vibra e infla
por debaixo da pele

a pata do desejo
desemboca inequívoca
no esgotamento

há qualquer coisa de
irreprimível na música
dos nervos aniquilados

apure o ouvido:
o corpo canta

O acaso é um pretexto para a intervenção da ironia. Fina ironia que se faz lírica mesmo quando cáustica. A insatisfação do eu lírico com seu repertório de conhecimentos acerca do mundo, de si e dos mundos – galáxias afora –, leva-o a notar que se hospeda onde se hospedaram grandes nomes da literatura. Quase por osmose, não fosse a (auto-, a intra- e a inter-) ironia, a vida teria o raio, o facho, o desfecho feliz das estrelas nunca cadentes. Mas todas as estrelas o são. Logo, o poeta percebe-se um hóspede estrangeiro: um estrangeiro de si em si. Daí a angústia, o desamparo. E a poética.

O que é matiz e volátil converte-se em definido  e concreto. Eis a linha dorsal, a estrutura fundante de um livro que é a favor do enfático silêncio / das pedras. Transcrevo esta parte do poema:
o mar
devia ser o mar ali
a assomar à porta
de nosso entendimento

a entupir de sal a
garganta de nosso tédio
a estourar o gargalo
de nosso recato

o mar
devia ser o mar ali
a espalhar a espuma
de nossas derrotas

a espatifar nossos corpos
contra o enfático silêncio
das pedras, contra o desespero
de nossos gestos atrasados

devia ser o mar ali
a roçar nossos pés
devia ser o mar
ou quem mais suportaria
assim a luz de maio?

Nada escapa incólume ao choque da beleza deste livro. Melhor seria dizer: tudo esvai e vem, numa antimúsica de partículas atômicas e, venturosamente, radioativas. Que centram-se na estrutura das ideias alfa, beta, gama. Que se autodesconstroem num tsunami de senti(pensa)mentos unissonantes.

Doa a quem doer: poesia não é fricote. E Mauricio Duarte é poeta das estrelas, das cidades, da dor, do atrito, das fissuras. Um poeta para o leitor fissurado em poesia, é claro.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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